29 mai 2024
Guilherme Tauil
A crônica, como o leitor do Portal já sabe, é um gênero sem forma fixa, meio líquido. Digamos que, no geral, ela se adapta ao recipiente em que é posta. E embora não se dê com qualquer pote, ela aceita uma boa variedade de copos, vasilhas e cumbucas. Às vezes, uma crônica tem toda a pinta de ser outra coisa, mas como é servida na tigela de um cronista, com a graça e o manejo da pena leve do cronista, fica sendo crônica. É o caso das muitas listas que Paulo Mendes Campos gostava de enumerar em suas colunas.
Os mais belos lugares-comuns, por exemplo, é um catálogo de quase duzentos chavões e clichês, isto é, pilhas gastas da língua portuguesa, como definiu o também cronista Humberto Werneck quase cinquenta...15 mai 2024
Guilherme Tauil
Não foi em homenagem ao dia das mães que Rubem Braga publicou, em março de 1968, uma trinca de crônicas sobre um entrevero envolvendo dona Rosalina, a proprietária de uma pensão no Catete, e suas duas filhas. Mas a data nos serve de gancho para rememorar a parte um, a parte dois e a parte três da altercação materna na pensão, onde Braga se hospedou durante alguns meses. Era um sobrado que ficava na rua Correia Dutra, quase na esquina com a Bento Lisboa, e já não existe mais. Graciliano Ramos, chamado sempre de Brasiliano pela dona do estabelecimento, também morou lá com sua família. Foi no quartinho dos fundos, aliás, que escreveu Vidas secas. Mas Graciliano é assunto...30 abr 2024
Guilherme Tauil
O amor acaba, você sabe. Provavelmente já leu isso naquela primorosa crônica de Paulo Mendes Campos. Mas como de tudo fica um pouco, o amor costuma deixar uma porção de coisas para trás, soltas no ar ou entocadas nos peitos dos ex-amantes. E às vezes tudo isso toma forma de novo quando acontece um reencontro, tempos depois.
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“Procurava não estar nos lugares onde ela pudesse aparecer”, escreveu Carlinhos Oliveira, por saber que seria “impossível recomeçar aquela bela aventura”. Um dia, porém, o acaso os reuniu. Ali estava ela. Ele a olhou e, para sua surpresa, sentiu indiferença. Ela já não era a mesma. Ele também não era mais aquele rapaz apaixonado da juventude. Agora, era “um homem...15 abr 2024
Guilherme Tauil
No título deu para disfarçar o assunto, mas em respeito às multidões que têm verdadeira repulsa desse inseto, é preciso abrir o jogo logo nas primeiras linhas: este é um texto sobre baratas. Mas, calma, não há nada muito gráfico nem desconfortável. Nada digno das páginas de um romance de Clarice Lispector, digamos. Só mesmo alguns episódios corriqueiros em que cronistas jogaram luz sobre esses repulsivos bichos noturnos.
Otto Lara Resende disse que a barata “não é um feio privilégio do Brasil”. É universal. Por exemplo, no verão Nova York fica entregue não às traças, mas às baratas. “Só que as de lá, do Hemisfério Norte, são miudinhas” e rápidas, com fôlego de campeão olímpico. Basta acender a luz e elas... 1 abr 2024
Guilherme Tauil
No princípio, dizem, era o verbo. Dele veio a luz, que resplandeceu nas trevas. Depois surgiram o céu e a terra, as águas e as montanhas. Em algum momento desse artesanato primordial, talvez para aplacar alguma solidão divina, criaram-se os anjos. Um deles, o mais belo e distinto de todos, rebelou-se contra a sua natureza. Por arrogância e orgulho, ou por desejo mesmo, caiu. Tornou-se o primeiro dos demônios. O diabo. Você já deve ter ouvido essa história contada por aí. Por isso, podemos resumir tudo num parágrafo só e seguir direto para o Rio de Janeiro, alguns milhares de anos depois, onde cronistas preenchiam suas laudas na imprensa, tentados igualmente por anjos e demônios.
Sobre o demônio, disse Paulo Mendes...15 mar 2024
Guilherme Tauil
“Nunca vi boa amizade nascer em leiteria”, disse certa vez Vinicius de Moraes, inveterado beberrão, para quem o melhor termômetro de afetos era uma garrafa de uísque – uma, no caso, é modo de dizer, pois melhor se fossem duas, três, quatro. “Uísque é o cachorro engarrafado”, concluiu, certamente depois de algumas doses. Não é improvável que esse diagnóstico etílico tenha surgido durante um pileque com Rubem Braga, outro voraz consumidor de malte.
Além da dedicação às garrafas, os dois amigos tinham vários pontos em comum: nasceram no mesmo 1913, exerceram postos diplomáticos e foram grandes gozadores dos prazeres da vida, apaixonando-se com tremenda facilidade. Braga, dos nossos maiores cronistas, fez também poesia.... 1 mar 2024
Guilherme Tauil
“De repente, não mais que de repente”, Vinicius de Moraes se junta à mesa do Portal da Crônica Brasileira. O poetinha, como era carinhosamente chamado, é o décimo oitavo cronista da casa e chega com uma deliciosa amostra de 15 textos. Sua vida, intensa como poucas, está resumida numa cronologia preparada por Katya de Moraes. E um belo texto de apresentação, assinado pelo músico e pesquisador Bruno Cosentino, dá conta de aprofundar algumas questões peculiares desse grande personagem da cultura brasileira – o único, segundo Carlos Drummond de Andrade, a realmente levar uma vida de poeta, totalmente sob o signo da paixão.
Vinicius de Moraes foi múltiplo – do contrário, seria apenas Vinicio...15 fev 2024
Guilherme Tauil
“O Carnaval morreu, viva a Quaresma!”, anunciou Machado de Assis, em 1877. Desnecessário esclarecer que o cronista se referia apenas ao desfecho dos três dias da festa, e não a um definitivo esticamento de canelas purpurinadas do Carnaval, já que a folia segue majestosa e colorida. Naquela época, tendo atingido a sua maioridade há pouco tempo, o Carnaval ainda não era isso tudo e precisava provar o seu valor para muitos. Machado mesmo, que sempre elogiou a festa pelo riso universal e inextinguível que promove entre o povo, achou a daquele ano meio chocha.
Não sabemos o que pode ter motivado esse diagnóstico desanimado – talvez um cortejo já cansado tenha passado em sua rua, talvez uma marchinha destrambelhada...15 jan 2024
Guilherme Tauil
O mar, quando quebra na praia, é bonito. Mas às vezes, virado e de ressaca, é também cruel. Ergue-se num rompante violento e vai engolindo tudo que a humanidade construiu. Em 20 de abril de 1963, o Rio de Janeiro sofreu uma dessas bordoadas intempestivas de água e sal. Uma pessoa morreu e as ondas foram lamber as paredes do Copacabana Palace. Prédios foram invadidos, barcos naufragaram na Baía de Guanabara, o jardim do Museu de Arte Moderna ficou submerso e a pista de pouso do Aeroporto Santos Dumont alagou. A ressaca foi tão brava que reverberou até Niterói, engolindo a orla de Icaraí.
O mar, na rua, foi molhar também a coluna de Carlos Drummond de Andrade no jornal, no dia seguinte. “O mar agiu em estado de fúria... 2 jan 2024
Guilherme Tauil
Pois é, esse aí foi mais um ano que acabou. Passou agorinha para nunca mais. Não sei se você é dos que tendem ao hábito e passam a virada sempre do mesmo modo, no mesmo lugar e com as mesmas pessoas, mas Rubem Braga, toda a vida angustiado por aquele “segundo que vem depois da meia-noite”, pisava no ano novo de qualquer jeito, com qualquer pé – já passara a noite sozinho, “andando como um tonto na rua”, “afundado no canto de um bar ruidoso”, tentando telefonar em vão, dormindo, com dor de dente, ou “nos braços de algum amor eterno”, que depois dobrou a esquina e partiu, sem a mais leve mágoa nos cotovelos, como o ano que se foi.
Os anos e os braços passam, mas fica sempre “essa emoção confusa...30 nov 2023
Guilherme Tauil
Há quinze dias, publicamos a primeira parte de um especial sobre os clubes de futebol dos cronistas. Falamos do Fluminense, do Flamengo e do América, com direito a um brevíssimo aceno ao Bonsucesso. Agora, como prometido, trataremos da dobradinha alvinegra que ficou de fora: Vasco e Botafogo. Não por acaso, os dois times mais aplaudidos pelo elenco de escritores do Portal.
Na arquibancada do Vasco, sentam-se Rachel de Queiroz, Carlos Drummond de Andrade e, vá lá, Antônio Maria – na verdade, ele era Sport no Recife, mas virou a casaca ao desembarcar no Rio, por amor ao seu conterrâneo Ademir de Menezes, ídolo cruz-maltino. Depois, com a amarga derrota do Brasil na Copa de 1950 – cujo gol de estreia, aliás, foi feito...16 nov 2023
Guilherme Tauil
A recente conquista da Libertadores da América pelo Fluminense levantou, além do moral do editor, uma questão importante por aqui: quais cronistas da casa estariam comemorando o título? E para que time cada um torcia? Como numa partida de futebol, vamos dividir o assunto em duas partes e abarcar o maior número possível de clubes e escribas.
Começando pelo campeão, o Fluminense tem uma das menores arquibancadas do Portal: apenas Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta (que nada tem a ver com o time paulista, aliás), vibrava com o tricolor. Mas não muito – era, como descreveu-se Millôr Fernandes, “um tricolor saudável”. Gostava mais de alfinetar os rivais, em especial os botafoguenses, que viviam “de cabeça inchada” e não...31 out 2023
Guilherme Tauil
Neste Dia D, quando comemoramos o nascimento de Carlos Drummond de Andrade (e, não por acaso, o Dia Nacional da Poesia), o Portal da Crônica Brasileira rememora uma coluna do poeta de 1953 cheia de conselhos A um jovem escritor, na esperança de alcançar jovens escritores também de 2023.
Certa noite, um rapazote de nome Alípio visitou o apartamento de Drummond “em busca de sabedoria grega”. Amparados por uma garrafa de conhaque e sob a vigilância do gato preto Crispim, mestre e aprendiz tiveram uma longa conversa sobre os ofícios da escrita. E como cronista não desperdiça assunto, o papo foi parar no Correio da Manhã já no dia seguinte, estruturado em uma sequência de deliciosos apontamentos.
Mas, para não iludir outros...16 out 2023
Guilherme Tauil
Hoje, o Portal da Crônica Brasileira recebe o reforço ilustre, ilustríssimo, de Machado de Assis, seu novo integrante. O escritor é o décimo sétimo cronista da casa e, naturalmente, dispensaria apresentações. Mas como sua produção na imprensa não é assim tão conhecida, preparamos algumas palavrinhas para acompanhar as 20 crônicas machadianas já disponíveis por aqui.
O leitor pode conhecer mais sobre a vida de Machado navegando pela farta cronologia preparada por Katya de Moraes. Além disso, um texto introdutório, assinado pelo jovem pesquisador Gabriel Chagas, levanta algumas questões importantes de sua trajetória literária, desde os primeiros versos até a glória nacional do “escritor mais brasileiro que jamais houve”,...29 set 2023
Guilherme Tauil
Durante quase toda sua trajetória pela imprensa, Rubem Braga anunciou a chegada das flores no fim de cada setembro. O nosso arauto da primavera saudava a estação à sua maneira, às vezes com a alegria discreta de quem redescobre a beleza da vida, às vezes contagiado pelo rompante da natureza, também ele desabrochando um pouco.
Mas nem todos os cronistas se emocionavam com os meses floridos. Em 1946, o sergipano Genolino Amado maldisse a estação em uma coluna meio azeda na revista O Cruzeiro. Para ele, o período não passava de uma sala de espera para o verão. Seria tolice, portanto, saudá-lo. Braga ficou chateado: “A coisa me atinge, pois tenho cantado a primavera todo ano, assim como as demais estações, conforme é uso...15 set 2023
Guilherme Tauil
“Coriza, cabeça inchada, olho vermelho, pele febril.” Esses eram os sintomas de uma gripe que Rachel de Queiroz pegou em 1957. Aos poucos, a dor foi se instalando pelos ossos do corpo, um a um. Depois correu “os dedos pelos músculos, repuxando, machucando”, até se acomodar “na barriga das pernas, nos rins e na nuca”. A moleza se generaliza, e para erguer um braço é preciso “apelar às suas reservas morais”. Erguer as pálpebras, talvez o movimento mais simples de todos, só “metendo o ombro e fazendo força”. É esse o retrato de uma Mulher com febre – na verdade, de todos nós.
A sensação do gripado é a de carregar um defunto dentro de si, e muitas vezes, na batalha que trava com a parte ainda viva do ser, ele...31 jul 2023
Guilherme Tauil
Domingo é dia de fazer observações “talvez não muito úteis, mas em todo caso honestas”, escreveu Rubem Braga. Por exemplo, que as casuarinas do parque estão crescendo e ficando belas. Coisas assim, sem importância prática. Nunca se deve esperar que algo de significativo aconteça, porque o “domingo não é um acontecimento, é um estado de seres e coisas”.
Um estado capaz de revelar muito. Veja só essa lojinha diante do cronista. Em dia de semana, tudo o que nela se vê é a “vitrina de mau gosto cheia de calçados e de enfeites vermelhos”. Às vezes “um sujeito na porta em mangas de camisa, às vezes uma senhora entrando” para comprar sapato. Ninguém, em dia útil, percebe o prédio velho que abriga a loja, muito menos...