17 jul 2023
Guilherme Tauil
Pio era o nome de um pintinho que os filhos de Paulo Mendes Campos compraram na feira. Diferente de seus antecessores, o bichinho superou a sina da vida breve graças a uma vizinha que entendia “da sobrevivência de pinto de feira em apartamento”. Mesmo assim, é melhor avisar antes que A verdadeira história de Pio não é daquelas de final feliz. Já de pequeno, Pio “mostrou-se um pinto meio esquisito, achegado aos seres humanos e danado de andejo”. Neurótico, piava a todo tempo, “como se o enervasse a passagem das horas”.
Quando a família se mudou de casa, a ave “passou dois dias subindo e descendo a escada, piando, piando, entre as pernas dos carregadores”. Essa atitude demasiado humana fez com que seu prestígio aumentasse...30 jun 2023
Guilherme Tauil
Mexendo em papéis alheios, Maria Julieta Drummond de Andrade encontrou uma foto velha, datada de 1910, de uma mocinha vestida de branco. Ela posava ao lado de uma cadeira tipo Luís XV, onde sentava uma enorme boneca loura. Ao fundo, uma cortina de paisagem pintada e um pedaço de coluna, dessas greco-romanas que emprestavam às fotografias antigas “uma atmosfera de poesia atemporal”.
A primeira impressão da cronista foi achar a menina séria, metida naquele cenário todo. Depois, observando-a melhor, viu que ela estava “a ponto de achar graça”, como quem “disfarça o esboço de um sorriso” mas não se atreve a quebrar a solenidade do momento – com “o cabelinho preto” cuidadosamente aparado para a circunstância, dava...15 jun 2023
Guilherme Tauil
Stanislaw Ponte Preta voltava para casa sem nenhuma preocupação, “certo de que seria uma noite calma, dormida longamente”, como há muito não tinha. Ao descer do automóvel, porém, recebeu a notícia grave do porteiro: “A Dolores foi assassinada”. Sem acreditar no que ouvira, o cronista tocou para o apartamento de Dolores Duran, uma das mais queridas intérpretes da noite carioca.
Não podia ser verdade. Ninguém seria capaz de matá-la, tão alegre que era a Bochechinha. Ele a chamava assim porque costumava cumprimentá-la com um aperto carinhoso na face. Quando se viam de longe – durante uma apresentação, por exemplo –, era ela que se apertava de leve ao reconhecê-lo na plateia. Certa vez, ao retornar de uma longa turnê,...31 mai 2023
Guilherme Tauil
“Is this an elephant?”, indagou a professora de inglês segurando um objeto, com um “ar de quem propõe um grave problema”. A tendência imediata de Rubem Braga foi dizer não, mas como nunca é sábio deixar-se levar pelo primeiro impulso, achou melhor analisar o objeto com cuidado. Aquilo “não tinha nenhuma tromba visível”, tampouco as “quatro grossas patas” dos paquidermes, nem “o pequeno rabo que caracteriza o grande animal”. Não era, portanto, um elefante. “No, it’s not!”, respondeu com segurança. A Aula de inglês prosseguiu com um suspiro satisfeito da professora, que logo emendou outra pergunta: “Is it a book?”.
Essa era fácil. “Tenho vivido uma parte de minha vida no meio...15 mai 2023
Guilherme Tauil
“Cada flor/ com sua forma, sua cor, seu aroma,/ cada flor é um milagre”, escreveu Manuel Bandeira em “Preparação para a morte”. Depois de testemunhar o nascimento de um abacateiro, Maria Julieta Drummond de Andrade quis acrescentar um versinho ao poema: “O abacate é um milagre”. Como não dava, o jeito foi glosar em prosa o seu maravilhamento pela “condição mágica desse fruto”, mais especialmente pelo seu caroço.
No dicionário etimológico, descobriu que caroço provavelmente deriva de cor, cordis, coração: “sendo o núcleo da fruta, é sobretudo o seu coração, sua parte sensível e palpitante”. De outro modo, não se explicaria “que um simples caroço de abacate pudesse resumir tanto mistério, tanta beleza...17 abr 2023
Guilherme Tauil
Paulo Soledade foi um compositor conciso. Seu cancioneiro é modesto, com cerca de apenas 40 composições, mas abarca alguns clássicos incontestes da música brasileira. Além de parceiro de Tom Jobim, Vinicius de Moraes e, entre outros, Antônio Maria, Paulo foi próximo de toda a patota da crônica e circulava muito bem pelas noites cariocas – apesar de ter sido um boêmio moderado que bebia somente cerveja, amava a noite e nela se perdia com os amigos sempre que a ocasião se apresentava. José Carlos Oliveira, o nosso Carlinhos, traça um perfil breve do amigo na crônica “Assim nasce uma canção”.
Sua profissão era, na verdade, comandante da Panair. Foi o único da geração lendária dos anos 1950 a literalmente andar com a...30 mar 2023
Guilherme Tauil
De madrugada, recolhido em seu escritório, Drummond foi surpreendido por um Visitante noturno que, como todos os insetos, apareceu sobre a mesa “sem se fazer anunciar”. Era “uma coisinha insignificante, encolhida sobre o papel e ali disposta, aparentemente, a passar o resto de sua vida mínima”.
O poeta, que tinha “o hábito de ficar altas horas entre papéis e livros”, pensou em esmagá-lo. Chegou a mover a mão, mas se deteve – “não seria humano liquidar aquele bichinho só porque estava em lugar indevido”. Embora sua “ignorância em entomologia” não lhe permitisse saber se era um inseto nocivo, na dúvida, o melhor era deixar viver aquilo que sequer tinha nome para ele – o que pouco importava. Não quis “recorrer...15 mar 2023
Guilherme Tauil
“Às vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles”, escreveu Clarice Lispector em “Bichos”, a primeira crônica de uma dobradinha filosófica sobre os animais. De seu modo peculiar de entender o mundo, Clarice tinha “certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora mais livres e indomáveis”. Porque “um animal jamais substitui uma coisa por outra, jamais sublima como nós somos forçados a fazer”. E, ainda por cima, se move, independentemente, “por força mesmo dessa coisa sem nome que é a Vida”.
Esse horror se traduzia, na verdade, em fascínio, vontade de aprender com as espécies selvagens. Para o espanto de mães e pais...15 fev 2023
Guilherme Tauil
Correndo o risco de espantar o leitor que ensaia o samba o ano inteiro, hoje vamos falar de cronistas pouco chegados no Carnaval. Nem é preciso pedir licença para apresentar a turma que prefere o sossego, pois o Bloco do Sofá dispensa a abertura de alas. Para se filiar ao movimento, não é preciso ser, de fato, indiferente à festa – mas pode ser, também. Basta não se deixar contagiar pelo tamborim da avenida, ter certa indisposição preguiçosa, ser fiel a um desejo de conforto constante.
Carlos Drummond de Andrade era desses. Preferia Ficar em casa. Dizia isso desde 1934, quando publicou Brejo das almas, seu segundo livro de poemas. Um deles, espécie de lampejo lisérgico anticarnavalesco, abre assim: “Deus me abandonou/...31 jan 2023
Guilherme Tauil
Em 1916, no Rio de Janeiro, o sambista Donga cantou que, pelo telefone, o chefe da polícia mandava avisar que na Carioca tinha uma roleta para se jogar. Quinze anos depois, Carlos Drummond de Andrade registrou a chegada do telefone automático em Belo Horizonte, numa série de crônicas publicadas no Minas Gerais. Ao leitor de pouca idade, explico: houve um tempo em que as ligações eram mediadas por uma telefonista, sentada em sua cadeirinha na central telefônica, responsável por manualmente conectar duas linhas, num processo que poderia levar horas ou até mesmo o dia todo.
No dia 23 de setembro de 1931, os belo-horizontinos demitiram suas telefonistas e passaram a ligar diretamente uns para os outros com seus telefones de disco...16 jan 2023
Guilherme Tauil
Quinta passada, 12 de janeiro, o patrono do Portal fez aniversário. São 110 anos de Rubem Braga, que segue surpreendendo leitores de todas as gerações com a beleza de sua prosa lírica. O velho Braga, como ele próprio se chamava desde muito jovem, é mesmo o nome mais importante da nossa crônica. Além de ter sido o grande responsável por formatá-la nos moldes que conhecemos bem, foi uma espécie de sol a iluminar a obra de todos os seus colegas, emprestando um pouco de cor à paleta dos cronistas – sobretudo dos que vieram depois.
Foi o caso de Carlinhos Oliveira, 21 anos mais moço, que descobriu com Braga o significado de ser moderno. Antes disso, menino ainda, engatinhando no ofício e só com “as bibliotecas da província atrasadas... 2 jan 2023
Guilherme Tauil
Os pais pediram que o menino fosse dormir cedo, para que pudesse “acordar à hora da passagem do ano”. A julgar pela “insistência da recomendação”, o ano não passaria se o menino não se deitasse. O que seria, francamente, um problemão – e para o mundo todo. Se o ano não virasse, “tudo o que estava para acontecer a partir da meia-noite, bruscamente ficaria retido nas malas, nos pacotes, na escuridão”. Por respeito à humanidade, o garoto acatou. Quer dizer, mais ou menos – ficaria na cama de olhos fechados, igual quando brincava de morto, mas dormir mesmo não dormiria. Só estando acordado seria possível “devassar de vez o mistério da passagem do ano”.
Os adultos mentem muito, sabia. Até mesmo sua mãe, “que...15 dez 2022
Guilherme Tauil
Por gentileza, arrumem um espacinho para mais uma cadeira na mesa do Portal, pois hoje recebemos um reforço há muito aguardado: Carlos Drummond de Andrade é o décimo quinto cronista da nossa escalação. Já na estreia, mais de 50 crônicas à disposição do leitor, além de uma farta linha cronológica e de um belo perfil assinado pelo professor e crítico literário Sérgio Alcides.
Nem todo mundo sabe que Drummond, nosso maior poeta, foi um cronista contumaz, com uma produção jornalística de cerca de seis mil textos espalhados sobretudo em jornais e revistas de Minas e do Rio. Foi ainda aos 18, saído de Itabira para Belo Horizonte, que bateu na porta do Diário de Minas e ofereceu seus serviços. Desde então, seguiu assinando...30 nov 2022
Guilherme Tauil
Antônio Maria pedira ao rapazinho do posto que “fechasse cuidadosamente o capô” do carro. Adiante havia uma longa reta e, “por prazer verdadeiro, muito antes de James Dean”, gostava de correr quando viajava sozinho. “A velocidade de um automóvel ao longo de uma reta é, em si, de um romantismo” que lhe preenchia a alma. Pisava fundo no acelerador, tirava o máximo de seu carro e, no curso da estrada, sentia dominá-lo inteiramente. “Não sei de amigo mais íntimo que um automóvel em alta velocidade”, disse. E mais: “Não sei de sentimento de solidariedade maior entre homem e máquina, máquina e homem, ambos gozando o mesmo bem-estar, ambos expostos a igual perigo”.
Pilotar um automóvel fumegante era qualquer coisa que...16 nov 2022
Guilherme Tauil
Apita o juiz e a bola sai com João do Rio, convidado a visitar o campo do Fluminense num domingo de sol. O tricolor carioca tinha apenas três anos de existência e o futebol, acredite, não era paixão nacional. O campo nas Laranjeiras, “igual e verde como uma larga mesa de bilhar”, estava ainda cheio de pedreiros trabalhando “ativamente na construção das galerias e arquibancadas”. “Moças de vestidos claros”, perfumando “o ambiente com o seu encanto”, e “cavalheiros sportsmen, de calça dobrada e sapatos grossos”, estavam lá para assistir à partida amistosa. Para cada “seis palavras nossas”, os rapazes soltavam três em inglês. Na verdade, todos falavam uma porção de inglês naquela tarde multicor –... 1 nov 2022
Guilherme Tauil
Lima Barreto nunca deu moleza aos donos de jornal – nem aos proprietários abastados, de modo geral. Por conta de suas críticas contundentes e de caricaturas debochadas de poderosos, esteve sempre indisposto com a dita imprensa burguesa. Também por isso, colaborou a vida toda com o que hoje chamaríamos de “imprensa alternativa” – pequenos jornais de bairro, periódicos de circulação curta, páginas universitárias. Mas não só: como escritor relevante de seu tempo, passou pelos principais veículos do Rio de Janeiro, onde desovou cerca de 440 crônicas. Nas páginas de revistas e jornais, publicou também artigos, reportagens, um soneto (o único de sua lavra) e, é claro, romances no formato de folhetim. É impossível, portanto,...17 out 2022
Guilherme Tauil
Dizem que não existe ateu quando o avião treme. Se depender da senhora que Paulo Mendes Campos flagrou Anteontem, em um avião de Belo Horizonte para o Rio, não existe mesmo. Ao contrário de seu filho de 12 anos, que tinha “os olhos abertos da alegria infantil”, ela estava “com os olhos esbugalhados de pânico” e o coração apertado pelo tempo instável, pelas nuvens carregadas com pinta de aguaceiro. Quando o avião se meteu “no espesso nevoeiro”, a mãe “tirou da bolsa dois poderosos terços, estendeu um ao garoto” e imediatamente começou “a desfiar o outro”. Inabalável, a criança recusou o rosário, alegando que um era suficiente, mas sofreu a censura materna: “Não, menino, você reza pelo motor direito, que...30 set 2022
Guilherme Tauil
Rachel de Queiroz estava sossegada em seu canto quando o rádio começou uma homenagem ao compositor Noel Rosa. Noel, prodígio do samba que viveu só 26 anos, “não tinha queixo, não tinha dinheiro, não tinha saúde”. Em outras palavras, “era feio, era pobre e era tísico. Matéria-prima especial para poeta, em verdade” – afinal, a “figura de poeta que concebemos e cultuamos é aquele que anda mendigando uma média, e põe pela boca os pulmões junto com a alma”. Algum desavisado poderia dizer que “Noel não era poeta, era sambista”. Ora, pois fique sabendo: “Todo legítimo sambista é poeta, enquanto nem todo poeta é sambista, isso sim”. E o “autêntico poeta que não é sambista” certamente trocaria “sua lira...15 set 2022
Guilherme Tauil
Hoje é dia de festa. Sérgio Porto, ou melhor, Stanislaw Ponte Preta, o heterônimo que adotou, é o décimo quarto cronista da nossa escalação do Portal. O criador de alguns personagens que ainda hoje habitam o imaginário brasileiro chega com uma pequena amostra de sua inventividade ímpar e de seu estilo absolutamente livre em 14 textos selecionados, que vão do humor escrachado à fina melancolia da memória.
Muito bem acompanhado, o cronista estreia com o reforço vocal do músico Bruno Cosentino, que gravou uma leitura de “Casa demolida”, uma das mais belas crônicas de sua lavra, e da caneta de Sérgio Augusto, que assina um perfil biográfico saboroso e completinho: do início da labuta na imprensa, pelas mãos do tio e crítico...