Burrice de gripe

Flagrantes de rua - placas, letreiros e cartazes, Rio Pardo de Minas-MG, 1985. Foto de David Zingg/ Acervo Instituto Moreira Salles.

“Coriza, cabeça inchada, olho vermelho, pele febril.” Esses eram os sintomas de uma gripe que Rachel de Queiroz pegou em 1957. Aos poucos, a dor foi se instalando pelos ossos do corpo, um a um. Depois correu “os dedos pelos músculos, repuxando, machucando”, até se acomodar “na barriga das pernas, nos rins e na nuca”. A moleza se generaliza, e para erguer um braço é preciso “apelar às suas reservas morais”. Erguer as pálpebras, talvez o movimento mais simples de todos, só “metendo o ombro e fazendo força”. É esse o retrato de uma Mulher com febre – na verdade, de todos nós.

A sensação do gripado é a de carregar um defunto dentro de si, e muitas vezes, na batalha que trava com a parte ainda viva do ser, ele parece levar vantagem. Aí, o corpo, “depois de pedir cama, pedir rede, sem achar agasalho, começa a pensar com suspiros na macieza quente da terra nossa mãe”, a pensar que os palmos, sendo sete, até que não são tantos assim. Mesmo quando a gripe não é de matar, é de morte. Prostrado e confiante demais nas aspirinas, é capaz que o doente lamente ter baixado a guarda em relação à vitamina C, guardiã moral de tudo que há de bom em nós. “Acho que quando sair desta”, escreveu Rachel, “vou rebentar em tomates, cenouras, laranjas-pera, flores e folhagens, de tanto tomar vitamina”. É o jeito.

O ideal do gripado seria um só: dedicar todo o tempo possível ao “aborrecimento e ao prazer” de sua Gripe, disse um Rubem Braga enfermo, combalido com “a cabeça tonta”, “o corpo machucado” e “a boca sem gosto para cigarro e comida”. O cronista era tomado por uma sensação de fraqueza após cada espirro, e os raios solares, mesmo já quase vencidos pelo ocaso, feriam seus olhos. Ficava “apenas quieto, sem vontade de ler, de telefonar ou de ouvir música”, numa espécie de “embriaguez leve e terna” que desaguava, como quase tudo em sua vida, em reflexões melancólicas sobre o passado.

Braga pontuou de relance o prazer da enfermidade, mas Antônio Maria foi além: classificou as “delícias de um resfriado” como um de seus Prazeres proibidos favoritos. Cultivava um resfriado com cuidado, fazendo de tudo para mantê-lo: saía do banho quente para o tempo frio, “do calor dos estúdios de televisão para a ventania da praia”, dormia com “a refrigeração ligada ao máximo”. Ele zelava muito pela burrice que um resfriado nos empresta. Uma burrice “carinhosamente centralizada nos ossos da face” – o máximo de burrice no menor espaço possível.

Quando alguém telefonava e estranhava a voz mal dublada de Maria, ele declarava com imenso prazer que estava resfriadíssimo há dias. Naturalmente, a pessoa dava recomendações infalíveis para curá-lo. “Vou fazer isso. Vou fazer. Foi bem lembrado”, respondia o cronista, e não fazia nada daquilo, porque o que queria mesmo era a alegria de uma infecção das vias aéreas superiores. “Os outros têm automóveis de luxo, bens imobiliários, tudo. Eu tenho o meu resfriado”, escreveu, “e não quero muito mais que isto”.

“Hoje estou triste e resfriado”, escreveu Paulo Mendes Campos, carregado de melancolia e secreções. “Hoje caí doente de uma tristeza que a música não cura.” Amuado, tudo o que queria era ser apenas um retrato para ficar “quieto na parede, olhando a agitação dos outros”, em tédio permanente – “um retrato a óleo com uma data muito antiga”. Ninguém acharia impertinente o silêncio daquela tela emoldurada em madeira envernizada, “porque é justamente próprio dos retratos o silêncio liso e o cansaço”. Mas o cronista se deu conta de que lhe faltava conhecimento para ser uma pintura. O retratado precisa ser sereno, severo e experiente. Nada disso seria possível a um homem com gripe, já compromissado com a burrice letárgica do vírus.

“Não, estou burro demais, não serei um retrato. Prefiro, em vez disso, redigir a minuta do manifesto da burrice”, escreveu. São 13 os pilares do manifesto burro de Paulo Mendes Campos, mas um deles resume bem o espírito geral: “A burrice, resfriada, constipada, há de dominar o mundo”. A essa altura, já tinha dominado pelo menos o cronista, que se sentia “deficitário, noturno, pessimista”. Um resfriado, afinal. Amanhã, talvez, “à custa de aspirina e outros oportunos disfarces”, voltasse a ser disposto e inteligente. Mas hoje… Hoje não. Hoje seguiria fanho, munido de lencinhos e lento de raciocínio.