Hoje estou triste e resfriado. Não sei se triste porque resfriado ou vice-versa. Talvez ontem à noite apanhasse um golpe do vento frio da melancolia. Agora, no céu azul-irremissível voejou uma andorinha sem pousar para o dizer o meu segredo, gratuita, gratuita. Mas, pense bem, porque azul é o céu devo dizer que Deus é azul?

Não. No fundo sempre impliquei com a andorinha que esvoaça indiferente e nem para à minha janela para dizer-me nunca mais. Hoje, nada de andorinhas! Abaixo o sentimentalismo sem vergonha dos artistas. Abaixo as imagens poéticas, que prometem desvendar um segredo que não existe. Hoje estou triste e resfriado, não suporto imagem poética. Hoje caí doente de uma tristeza que a música não cura.

Hoje, para ser franco de uma vez, queria ser apenas um retrato. Ficar quieto na parede, olhando a agitação dos outros, melhor que ficar triste e resfriado e, fora disso, permanecer em tédio ou esperança descabida. Hoje queria ser um retrato a óleo com uma data muito antiga, emoldurado em madeira envernizada. Inútil como a espada de meu avô, silente, misterioso e frio como o assoalho dos mares, de bigodes imensos e nostálgicos como todo retrato a óleo que se preze. Pelo menos, ninguém exigiria de mim o entusiasmo que não tenho, nem eu mesmo. Ninguém acharia impertinente meu silêncio porque é justamente próprio dos retratos o silêncio liso e o cansaço. Pelo menos não teria que assegurar para o futuro a subsistência do corpo e da alma, a vida mínima que se exige de um cidadão incorporado à enfadonha colmeia social.

Mas eu sei que nunca poderei ser um retrato: falta-me paciência, severidade e know-how. No fim de tudo, meus olhos fugiriam pela janela à procura do voo leviano das andorinhas, meus amigos se ririam, ora essa, logo ele, um retrato...

Não, estou burro demais, não serei um retrato. Prefiro, em vez disso, redigir a minuta do manifesto da burrice, nestes termos:

Só a burrice é infatigável. 

Só a burrice desconhece limites.

A burrice, ao que tudo indica, é a inteligência do futuro.

O burro não carece nem de técnica nem de inspiração — está acima destas querelas vãs.

A burrice, resfriada, constipada, há de dominar o mundo.

Sou burro, logo existo.

O burro é sadio, o burro é forte, o burro é burro.

O burro é essencialmente dinâmico.

Colombo descobriu um mundo novo porque era burro, graças a Deus.

A lenda da invenção da roda é um símbolo perfeito da capacidade progressista e civilizadora do burrismo.

O burro de Buridan sempre manteve uma atitude de altiva superioridade perante os filósofos que discutem sobre ele.

O burrismo é a compreensão da opacidade universal.

Inverter os valores, pois a burrice não perturba a digestão do mundo.

*

Sou burro, não sou um retrato. Um burro completamente triste e resfriado pouco antes do crepúsculo. Sempre a bola que bate na parede e volta às mãos do menino, sempre os vulpinos, as estrelas, o corvo, os seixos, o João Sebastião, o Ariel, o Noel, as duas fomes do corpo, a hipertensão, as andorinhas...

Cansadíssimo. A simples existência comercial dos calendários me dá uma vontade burríssima de dormir.

Hoje sou deficitário, noturno, pessimista. Um resfriado. Amanhã, talvez... À custa de aspirina e outros oportunos disfarces. Hoje não.

paulo-mendes-campos
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