Caderno de anotações. Arquivo Paulo Mendes Campos. Coordenadoria de Literatura/ Acervo Instituto Moreira Salles.
A crônica, como o leitor do Portal já sabe, é um gênero sem forma fixa, meio líquido. Digamos que, no geral, ela se adapta ao recipiente em que é posta. E embora não se dê com qualquer pote, ela aceita uma boa variedade de copos, vasilhas e cumbucas. Às vezes, uma crônica tem toda a pinta de ser outra coisa, mas como é servida na tigela de um cronista, com a graça e o manejo da pena leve do cronista, fica sendo crônica. É o caso das muitas listas que Paulo Mendes Campos gostava de enumerar em suas colunas.
Os mais belos lugares-comuns, por exemplo, é um catálogo de quase duzentos chavões e clichês, isto é, pilhas gastas da língua portuguesa, como definiu o também cronista Humberto Werneck quase cinquenta anos depois no prefácio do seu O pai dos burros, um dicionário de lugares-comuns e frases feitas. Entre os preferidos de Paulo Mendes Campos estão “do fundo do coração”, talvez o mais praticado de todos, “voz da consciência”, essa entidade que habita os recôncavos do nosso cérebro, e o democrático “aconchego do lar”, que, em diferentes variações, batiza inúmeros asilos e casas de repouso.
Muitos outros lugares-comuns resistiram ao tempo e, sãos & salvos, envelheceram com dignidade na ponta da língua do brasileiro. É o caso de “agilidade felina”, “suaves prestações”, “branco como a neve”, “finas iguarias” e “fiapo de gente”. Outros se perderam nos becos escuros do português: “vascas da agonia”, “dar a mão à palmatória”, “burilado soneto” e “malhar em ferro frio” parecem ter se aposentado por tempo de contribuição. E há, ainda, pelo menos um caso raro de lugar-comum que sobrevive graças a uma categoria profissional bastante específica – se algum dia os apresentadores de circo deixarem de existir, “respeitável público” decerto desaparecerá junto com os picadeiros.
Mais conhecidas são as listas do cronista de Coisas deleitáveis e Coisas abomináveis. Do lado positivo, há algumas ocorrências de bom gosto generalizado, como “água de geladeira, às quatro horas da manhã, depois de uma festa”, “aroma de madeira”, “bisbilhotar biblioteca dos outros” e “chegar em casa depois de viagem”; e outras incrivelmente específicas, como “cochilar em viagem de automóvel com o rádio tocando canções napolitanas”, “oferecer bebida a uma senhora de idade e ela aceitar com prazer”, “passarinho colorido quando pousa perto da gente” e “aquele coelho de relógio em Alice no país das maravilhas”. Na lista das coisas detestáveis, o mesmo: o ódio óbvio de “domingo às seis da tarde”, “declarar imposto de renda”, “enjoo de mar” e “polícia empurrando a gente de leve”; e a repulsa inusitada por “amigo que não compra cigarro, a fim de fumar pouco”, “mulher feia falando mal de mulher bonita”, “discurso, sobretudo de agradecimento a uma homenagem” e “apartar briga em espanhol”. Já “escrever crônica diária”, “ser puxado por alguém para dançar” e “a palavra cognac” não direi em qual das duas listas estão. Descubra por conta própria.
Espécie de desdobramento do catálogo das coisas deleitáveis, a lista de Pequenas ternuras traz achados poéticos, como “quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava”. E mais: “quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso amoroso”, “quem procura numa cidade os traços de uma cidade que passou”, “quem entra em ligeiro e misterioso transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos líquens” e “quem se impressiona com as águas nascentes, com os transatlânticos que passam, com os olhos dos animais ferozes”.
Na lista de Nomes de lugares do Brasil, Paulo dispõe aldeias e povoados históricos como se escrevesse um poema: “Cruz de Malta, Pindorama,/ Brodósqui, Brusque, Buíque,/ Nova Europa, Cosmorama,/ Massaroca, Xique-Xique”. Esse enfileiramento aparentemente aleatório de cidadezinhas é, na verdade, trabalho mesmo de poeta – trata-se de uma ritmada redondilha maior, em sete sílabas poéticas, com direito a uma aliteração da letra B e um esquema de rimas cruzadas.
Quando Vinicius de Moraes retornou de uma viagem de meses pela Europa, em 1952, o amigo o entrevistou e publicou uma relação das coisas que o poeta gostou e não gostou. “Ter beijado a mão de Greta Garbo” está, é claro, na coluna das coisas boas, e “o sentimento da presença recôndita do nazismo” no lado dos desgostos. Vinicius também não gostou do túmulo de Dante em Ravena, “a pedir dinamite”, nem da “volta das saias compridas à moda feminina”. Mas achou graça na constatação de que “as italianas não raspam debaixo do braço” e na visita ao museu Van Gogh, na Holanda.
Outras listas do cronista são mais diretas, menos poéticas, mas igualmente prazerosas para o leitor. Caso da relação de trinta coisas que adiamos sempre para a próxima segunda-feira, semana após semana, mês após mês, ano após ano, “até que os dias já não existam mais”. Promessas de fumar menos, se exercitar mais, comer melhor e acabar definitivamente com aquilo. Mas passa a segunda e “voltamos a incidir nos mesmos erros, a cultivar os mesmos egoísmos, a bocejar as mesmas preguiças”.
Pensando bem, melhor teria sido se tivéssemos preparado uma lista com as melhores listas de Paulo Mendes Campos. Mas agora já foi.