Campanha publicitária da agência Alcântara Machado para a caneta Sheaffer, Brasil, 11/01/1963. Foto de Chico Albuquerque/ Acervo Instituto Moreira Salles.
Foi o jornalista Wilson Figueiredo que classificou Paulo Mendes Campos como um escritor “literariamente ambidestro”, de cuja pena a prosa e a poesia brotavam com igual impulso. Naturalmente, a mistura de registros resultou num norte único de texto. De fato, de todos os nossos cronistas, Paulo foi o que mais experimentou a forma do gênero, expandindo suas fronteiras flexíveis enquanto desviava de lugares-comuns que a escrita cotidiana para a imprensa poderia oferecer. Em suas colunas, publicou tudo o que se esperava de um cronista e mais, como causos, listas, poemas em prosa, pequenos contos e também crítica literária.
Como crítico, PMC não chegou a produzir nada formal, mas escreveu algumas preciosidades, como um belo ensaio sobre o livro Coração das trevas, de Joseph Conrad, e diversos perfis de escritores. Além disso, volta e meia desaguava reflexões sobre literatura em suas colunas, como mostra nossa seleta de três crônicas de crítica de poesia. Elas são uma prova do invejável conhecimento erudito do cronista – que, desde a adolescência, preenchia cadernos com seus trechos favoritos de literatura francesa, inglesa, espanhola e brasileira.
No início dos anos 1950, ele, Fernando Sabino, Cecília Meireles e Antônio Callado entrevistaram o escritor Stephen Spender num programa de televisão. Os brasileiros quiseram saber quem seria o maior poeta inglês daquele tempo, e o inquirido respondeu que “os mais importantes poetas ingleses eram dois americanos”: T. S. Eliot, que nasceu nos Estados Unidos e se naturalizou inglês, e W. H. Auden, que fez o caminho inverso. Sobre este, nosso cronista escreveu algumas impressões muitos anos depois.
Para PMC, Auden foi O poeta estranho que arou o terreno de seus versos com assuntos até então distantes da poesia. Ele preferia “contemplar as multidões sofridas dos subúrbios” em vez de campos de lírios, gostava mais do viajante que do leitor e tinha “um tratado de mineralogia” como livro de cabeceira. Seu sonho poético “não adejava em torno da musa”, mas de uma cidade justa. “Artesão do amplo leque semiótico”, Auden leu filósofos e teólogos, “mas afirmava com uma petulância irritante” que o amor vale mais que a filosofia. O importante é mesmo “saber que a opção do amor está diante de nós até a hora da morte”, arrematou o cronista.
Paulo também escreveu sobre o espanhol Federico García Lorca, assassinado pela ditadura franquista em 1936. Lorca, sensual “professor dos cinco sentidos corporais”, foi “o poeta das coisas”, definiu o cronista. A arquitetura de sua poesia é simples, “mas esconde um mundo de minúcias técnicas, delicadezas pacientemente sutis, surpresas prodigiosas”. O que há de venturoso em seus versos se revela por uma “opção pelas coisas pobres”, coisas “que o desgaste cotidiano paralisou e emudeceu”. É uma obra popular pelo espírito e “aristocrática pelo manejo de uma técnica habilmente estruturada”, pois o espanhol tinha se convencido de que é a forma do poema – suas palavras, imagens e metáforas – que assegura seus “direitos de eternidade”.
Em 1946, Paulo Mendes Campos escreveu sobre um xará francês, Paul Valéry, falecido no ano anterior. O poeta teria sido, disse o cronista, “o último representante de uma família intelectual” em extinção: os literatos. Um literato tem por essência empenhar tudo, até o próprio espírito, num “trabalho intelectual contra qual o tempo não prevalece”. São pessoas que se entregam verdadeiramente às horas lentas da literatura, obstinadas não só a “escrever bonito”, mas “extrair da linguagem um poder fabuloso”. Para isso, Valéry precisou sacrificar sua própria humanidade terrena, resistindo “às solicitações do homem que havia nele”.
“Bem sei que sacrifícios de tal sorte já não são compreendidos”, apontou Paulo Mendes Campos, ciente de que vivia “a época do homem”, em um mundo plenamente jornalístico. Mas, bem por isso, “se houvesse a compreensão não haveria o fenômeno”. E não estaríamos aqui, décadas depois, compartilhando com nosso cronista a sensação de certa orfandade lírica.
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Nota do editor: Para saber mais sobre os cadernos de citações literárias de Paulo Mendes Campos, recomendamos visitar o texto “Caderno da solidão: Paulo Mendes Campos”, da pesquisadora e colaboradora da casa Elvia Bezerra.