8 jul 1951

Ia levando uma encomenda...

Periódico
Diário Carioca

Coluna: "Primeiro Plano"

Publicada, posteriormente, no Diário Carioca, de 2/10/1959, com o título "O retrato".

Ia levando uma encomenda, um par de chinelas, se não me enganaram as indiscrições táteis. Entrei. Além da hóspede mineira, a que se destinava o embrulho, conversaram-me na sala a dona da casa e sua filha. Dando-me com os olhos no retrato, de mui louçã menina-e-moça, informou-me a filha orgulhosa: “é de mamãe quando solteira”. Quis dizer: “a senhora era muito bonita”. A indelicadeza do verbo no pretérito e o cinismo que me faltou de colocá-lo no presente trocaram-me qualquer frase por um grunhido interjetivo.

Outros personagens surgiram, o dono da casa é um sobrinho seu. O marido do retrato mostrou-se logo um velhinho cordialmente calado. Não participa de nosso tempo. Seu mundo esvaiu com o declínio dos encantos que o retrato fixou: a louçania, os cabelos compridos, os olhos compridos.

O sobrinho é moço bonito, de fino tratamento. É espírita e estuda canto, mostrando-se excepcionalmente adiantado nas duas coisas. Além disso, é aspirante à fortuna vitalícia de seu avô, quase falecido. Fala à hora certa, esconde as sílabas à moda paulista, adoça os períodos com locuções condignas do fino tratamento: desculpem-me, se me permitem, com o seu perdão. É todo arte e manual de civilidade. A conversa dele é esotérica: fluidos, visões, mensagens. Ontem mesmo — ele o diz como quem comenta o jogo Vasco x Áustria — viu astros prateados descendo do céu à sua janela, senha pela qual seus guias incorpóreos estão a aprovar-lhe o bom comportamento neste vale de dólares. Recalcitrantemente terráqueo, renuncio à possibilidade de entender este exemplar imponderável da raça humana.

Na verdade, chegou a hora do almoço. Cerrada fidalguia, barra-me a porta da rua, da liberdade, da praia. Fico. O tenor, vidente e herdeiro, também fica. Quedamos por um momento harmonizados na concórdia do apetite orgânico. A velha, que é simpática e serelepe, informa sobre a sua vida coisas folhetinescas. Entrará dentro de dois meses na posse de uma herança ansiosamente inesperada. Depois quer saber se coleciono selos. (Não) Se toco violino. (Não) Se adoro Petrópolis. (Não) Que faz você? Nada, respondo depois de breve meditação autobiográfica. É um jovem escritor e jornalista, dos de maior futuro aliás — adianta com um sorriso a jovem mineira. Diante do que, tive que achar de uma beleza incomparável a Ceia dos cardeais.

Passamos ao living. O tenor cantou. A filha dançou boogie-woogie enquanto telefonava. A velhinha também quis dançar, mas as pernas não foram com as denguices da alma. O velho esgueirou-se como um desertor, sem muita esperança de me fazer entender que ele nada tinha com aquilo.

E eu? Olhava o retrato, olhava a velha, depois o retrato. Lembrei que tinha de escrever o “Primeiro Plano” continuei a olhar o retrato, depois a velha, depois o retrato.

paulo-mendes-campos
x
- +