Tenho de cumprimentar Pinochet pelo seu bom gosto. Escolher o Rio para a sua vilegiatura não podia ser mais oportuno. Maio chegou atrasado, mas chegou, fiel ao azul e à temperatura amena. Impossível alguém não se render aos encantos de maio no Rio. Por toda parte a cidade resplandece. Não há beco sujo que não tenha sido tocado pela graça de maio.

Se é assim até debaixo dos viadutos, residência de mendigos, imaginem como estão as praias. O largo horizonte de todos os caminhos sugere liberdade. Diante dos olhos, perto, as moças bonitas e os rapazes atléticos. Tudo convida à vida. Paz, alegria, saúde. “Sea, sun and sex”. Os três “s” do turismo feliz.

E em Ipanema, no Caesar Park. Pode haver privilégio maior? Ia esquecendo um detalhe: na suíte presidencial, que custa uma nota preta. Estive lá uma vez, para ver Elis Regina. Era uma rainha na suíte presidencial. Tinha corte, famulagem, tudo. E merecia. Posso imaginar o bem-estar de Pinochet. Em maio, em Ipanema, no Rio.

Mas tem gente pra tudo neste mundo. O grupo Tortura Nunca Mais foi lá apupar o general. Quase atrapalha a calmosa digressão dos Pinochet. Sua mulher, Lucía Hiriart, saiu pela porta da frente e ganhou palmas de duas compatriotas. Vê-se que era livre a manifestação. Assassino, assassino — gritavam os manifestantes.

Escolado nessas coisas, Pinochet trazia forte segurança. No alarido das vaias reconheceu o sotaque de uma chilena e gritou-lhe um sonoro palavrão. Que coisa feia, general! Em todo caso, cumpre reconhecer, nada como a liberdade. Depois que caiu Allende, em 1973, fui a Santiago. O palácio de La Moneda estava ainda em escombros. Pesava sobre a cidade e o país um silêncio tumular.

Se não houvesse outras tantas razões para ser contra a ditadura, a mim me bastaria aquele silêncio. Sufocante. Fétido. O toque de recolher soava sinistro. Como Hitler, Pinochet em 1980 convocou um plebiscito e ficou no poder. Não acabou como Mussolini. Nem como Somoza. Sobreviveu, com uma conjuntura internacional que de certo modo lhe foi favorável. Sob a tirania chilena, só o mercado ficou livre. Livre está Pinochet. Mas o grito que ele abafou está no seu encalço.

otto-lara-resende
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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