Corram outros ao Festival Internacional do Filme, para ver de perto as muitas Cardinales, estrelas em exercício de luminosidade imediata. Eu, não. Prefiro quedar-me por aqui, neste cineminha particular do espírito, contemplando uma “vaga estrela Ursa Maior”, que há 24 anos deixou de luzir — e como luz e reluz e centiluz assim mesmo, no nevoeiro!
Não se trata de operação-saudosismo, pois que outro motivo me assiste. Esta contemplação é a forma de comemorar o aniversário da amiga. Amanhã ela faz... digo? não digo? digo: 60 anos. Bem sei que, entre as faltas de educação, esta de dizer em público a idade das senhoras é a mais deplorável; a isto se chama hoje grossura. A dama em questão me perdoaria, sabendo-me seu devoto, e o que há de fidelidade e fervor nesta divulgação, dirigida a outros fiéis igualmente fervorosos: não é inconfidência, é chamado geral. Acontece que ela nem desconfia de minha existência (e somos tão ligados) nem lerá esta notícia votiva. E seus fiéis, meus coparoquianos, me serão gratos por tê-los convocado para o pensamento da estrela, isto é, da amiga.
Sinto que o escrito está meio confuso, e é necessário abrir o jogo, informando que amiga e estrela são uma só pessoa sueca, nascida em 18 de setembro de 1905, chamada Greta Garbo. Décio Vieira Ottoni aí está, dando constância do registro civil; e o Petit Dictionnaire du Cinéma, de Jean Mitry, também.
Mas é uma velha coroca! dirão os adoradores do tempo, essa invenção de costureiros, que precisam inventar novos corpos para serem usados por novos vestidos. Que jovem eternidade! Retrucaremos nós, pois o fato de completar seis décadas não atinge nem de leve sua vera, indelével fisionomia, essa “beleza que vem de dentro”, que nosso companheiro Gilberto Souto viu argutamente em seus olhos, ao inventariar as razões físicas e metafísicas de amar a Garbo — razões independentes até de seus filmes, que estes envelheceram e por isso não me apeteceu ver em recente festival.
Ao contrário, cada ano que passa a Garbo mais se instaura em sua categoria mítica, mais profundo se torna o sortilégio da mulher que sempre foi mais do que o papel que interpretava. O papel é que era uma interpretação fugitiva de tudo que Garbo encarna como ideia platônica em forma inteligível e sensível, por destino e vocação mais do que por intenção ou artifício. Ela é a reminiscência, o velado testemunho de um estado primeiro, em que as harmonias se entrelaçavam e compunham um canto único, de que só restam fragmentos, dispersos. Move-se, sorri e fala menos do que é preciso para explicar, mais do que é preciso para nos infundir a nostalgia daquele antes-do-tempo, absoluto, perfeito. Dado que essa nostalgia não basta como chave, chamamos a Garbo de mulher-enigma, esfinge, ninfa-nenúfar, beteljosa pálida, orquídea lunar, cidade submersa, ptyx... Palavras, palavras. Não cingem a realidade-essência. Greta Garbo é muito mais do que Greta Garbo, e nada tem a ver com o mito publicitário, que de resto ela abominava, e de que soube se despedir com o mais severo pudor, passando a ser a mulher feia, de capote comprido, chapelão e óculos escuros, errante pelas ruas de Nova York, indiferente ao que digam ou pensem das ruínas de sua glória. Essa Garbo oculta em si mesma, tornando-se seu próprio e indevassável capote, no fundo do qual os 60 anos radiam o mesmo inefável e indestrutível fascínio. Amigos, à celebração.