Imagens do tempo

Ora, dá-se que o jovem casal completou 38 anos de união, e o cronista, arvorado em repórter, deliberou entrevistá-lo, para fornecer ao leitor alguma possível receita de felicidade. Levou um questionário indiscreto. Primeira pergunta:

 Como é que vocês conseguiram passar tanto tempo juntos?

Os dois, a uma voz: — Não foi tanto tempo assim. Um terço (mais de 12 anos), dormindo oito horas por dia.

 Mesmo assim, meus caros. 

 Houve o trabalho dele, que nos separava a maior parte do dia – esclareceu ela.

 E ela passou boa parte da vida no cabeleireiro – completou ele.

Eu: — Cabeleireiro, trabalho e sono: será isso vida em comum?

 Não — disse ela, sorrindo. Há os intervalos.

 De qualquer maneira, 38 anos! É um latifúndio.

Ela: — Bem, brigamos o necessário. Está satisfeito agora?

Eu: — Ainda não. Brigas feias, dessas de atrair vizinho?

 Como quer você que uma briga seja bonita? — ponderou ele. Brigamos como foi possível. Confesso que a iniciativa era geralmente minha. Ela, porém, provocava sempre.

— Ele trazia os motivos da rua, às vezes bem visíveis — informou ela.

— Outras vezes, os motivos vinham da cozinha — emendou ele. Um homem gosta de variar, pelo menos de pratos.

— Mas depois das brigas…— insinuei.

— Sim, era bom — admitiram ambos. E cada um por sua vez: 

— Nos primeiros tempos, ele punha bilhetes debaixo do travesseiro, pedindo perdão. Tenho um arquivo.

— Ela, de desgosto, jejuava. Gostando tanto de bife!

Ficaram recordando:

 Ele mentia muito.

 Ela me achava mentiroso justamente quando eu eu falava verdade.

— Ele era impaciente.

— Ela tinha paciência demais, me enervava.

— Ele tinha ódio de me ver doente. Embora sentindo pena, querendo ajudar, virava onça.

 Eu também não podia adoecer, os cuidados dela eram excessivos. Doente precisa de paz.

 Algum dia, no íntimo, você pensou em matar sua mulher? — arrisquei.

— Mais ou menos. Quando ela comprou um tapete horroroso.

— E você já pensou em envenenar seu marido?

— Nunca. Mas tinha medo de que outra mulher o fizesse. 

— Vocês discutiam por causa de dinheiro?

— O dinheiro não dava para isso – explicou ele, satisfeito.

 Não posso me queixar. Ele nunca me negou nada — acrescentou ela.

— Ela teve a esperteza de nunca me pedir nada que eu não pudesse dar.

 Que foi que preservou o lar de vocês, nos momentos difíceis? 

Ela: — O tricô, que apura as virtudes femininas, e o hábito. 

Ele: — A poltrona, o cãozinho, o hábito.

Eu: — Só isso?

Os dois: — E tudo mais.

— Quanto tempo leva para um se acostumar ao outro?

Ele: — Uma semana. Mas durante os primeiros 20 anos, uma vez ou outra a gente se estranha, ao acordar. E isto salva da rotina.— Qual o papel dos filhos no casamento?

 Ele: Educar os pais. Poucos o conseguem.

 Vocês se educaram?

Ele: — Não. Continuamos a achá-los mais moços do que nós, A verdade é que, nascendo depois, sabem muito mais. Os pais são rebeldes ao ensino.

Ela: — Ele é sofisticado. No fundo, ama os descendentes como qualquer coruja.

 Qual foi o presente de aniversário que ele deu a você? 

 Um colar de pérolas barrocas.

Ele: — Para me fazer lembrado. Ela diz que sou uma pérola— mas barroca, isto é, imperfeita. 

Ela: — E  eu dei a ele um barbeador elétrico. Para lembrar que o marido não deve ficar com a barba crescida quando não sai de casa.

 Vocês se casariam de novo? 

Como resposta, beijaram-se. Não aprendi nenhum segredo, mas afinal o segredo de todos os casais antigos deve ser mesmo esse.

carlos-drummond-de-andrade
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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