O poeta nacional Manuel Bandeira deixa crescer o bigode, e há controvérsia entre seus amigos. a respeito da iniciativa. Faz bem o poeta em alterar sua antiga e peculiar fisionomia, amada das musas? Não lhe assenta o bigode? Deve este assumir forma diversa da escolhida pelo portador?

Em face destas e de outras indagações suscitadas pelo inopinado acontecimento, Bandeira, com humour, admite a realização de um plebiscito amical, para decidir se continuará, ou não, mustachudo.

Não há dúvida que tal plebiscito seria muito mais interessante do que esse outro, tão boboca, destinado a resolver se o Rio de Janeiro deve ou não ser repartido em bolinhos políticos para clientelas paroquiais. Pelo menos cuidaria de assunto sério, qual seja o limite da liberdade atribuída ao artista na administração de sua figura física.

Percorro com a maior atenção a venerável encíclica “Pacem in Terris”, que discrimina os direitos da pessoa, e não encontro referência específica ao direito de usar bigode. Tampouco o menciona a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU, Deve concluir-se daí a inexistência ou discutibilidade desse direito? Acho precisamente o contrário. É talvez o único direito indiscutível no mundo de hoje (salvo para as praças de pré, que não têm direito algum), esse de adornar ou não o rosto com apêndice capilar do tamanho e forma que melhor nos agrade. Todos os demais direitos, por mais que os proclame a voz generosa do Papa ou da assembleia das nações, sofrem na prática distorções violentas e a cada momento são negados na face da terra, muitas vezes em nome do direito.

Todavia, há que examinar o caso particular de poetas, pintores. escultores, músicos (excluídos os comediantes, que for obrigação profissional têm mil rostos). A cara desses homens marcados pelo signo da arte exprime tal ou qual princípio interior de criação, seja porque há concordância luminosa entre os traços fisionômicos e as linhas espirituais pressentidas, seja perque a admiração e o fervor dos admiradores assim o estabeleceram por deliberação irrecusável. Quer dizer: o poeta é um retrato de sua poesia, ou fica sendo, no consenso geral. Nessas condições, ser-lhe-á lícito alterar o retrato, lançando turbação no espírito público? E dono de sua face? Pode mexer ela à vontade?

Afeiçoado à noção de tombamento dos bens culturais, que são patrimônio coletivo, eu responderia que não. Contudo, o princípio fundamental de arte é a liberdade, e não vejo porque o artista, livre de criar sua linguagem e seus mitos, esteja impedido de criar um simples bigode, ou mesmo uma frondosa barba. Os fiéis que se adaptem à nova face. O poeta é soberano. E terá suas razões.

Pelo que, voto sim no plebiscito bandeiriano, aproveitando o ensejo para saudar o poeta em seus viçosos 77 anos, que ensinam trabalho, alegria e mocidade aos moços.

carlos-drummond-de-andrade
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