Imagens do mundo

Já sei, leitor, o que dirás hoje ao esbarrar comigo nesta coluna: “Entra ano sai ano esse sujeito está sempre escrevendo. Por que ontem, em vez de bater máquina, ele não foi conversar com a garrafa e pular no réveillon”? E dirás justo, pois é o que eu devia ter feito. Mas pensei em ti, imaginei-te de ressaca e desamparado no hall do Ano-Novo, precisando de conselho e camaradagem, e sacrifiquei minha celebração para te assistir nesta hora.

Toma o teu sal de frutas, amigo, e começa o batente hoje mesmo, se queres estar em dia com os novos tempos. Limpa a tua casa; se for grande, apenas o escritório; se fizer muito calor, pelo menos a prateleira do banheiro. É um gesto simbólico. A limpeza já começou na Guanabara, com algumas rápidas, mas sintomáticas demonstrações de espanador oficial, e daqui a um mês começará no país.

Não digo que o Brasil vá ficar cintilante como uma joia, mas tudo indica que teremos em 1961 um bom serviço de limpeza pública. Vejo alguns cavalheiros com medo de tanta vassourada, tanto sabão e água sanitária, obtemperando que um pouco de sujo dá valor histórico às coisas. Por que não o conservam no corpo ou na roupa, e o admitem nos negócios de Estado?

Arrumar o país é tarefa rude, mas desarrumá-lo ainda mais é impossível; nem um perito como o dr. Juscelino, voltando de férias, o conseguiria. Assim, não tens que optar: vai ajudando de mansinho a recuperação, e gozando a teu modo a sensação inesquecível de confiar no governo. Confiar, é claro, com olho crítico; mas o olho crítico já teve bastante trabalho nos últimos tempos, e é grato distinguir na paisagem aquele ponto de esperança que estimula a gente a vencer o comodismo, a tentar um gesto novo, e a fazer alguma coisa.

Isto na ordem nacional; na ordem internacional, por mais que te empenhes em não participar dos negócios do mundo, com o café da manhã tomas um pouco de Cuba, de Congo e de armas nucleares. O ano vem tinindo do esforço pela autodeterminação dos povos e pela extinção das diferentes formas de colonialismo, e nenhum de nós pode fingir que não tem nada com isso. Rir das macaquices de Nikita e do palavrório dos reacionários ocidentais não basta. Tens, temos que contribuir um pouco para que se apure e se dinamize a consciência desses problemas. Abre a janela de teu apartamento, e alonga a vista o mais possível.

Na ordem pessoal, meu caro, sê moderado, porém não abstêmio, cauto, porém não medroso, paciente, porém não mártir, delicado, porém não baboso, alegre, porém não palhaço. Dedica atenção especial a mulheres e crianças, que são a mesma flor, e trata-as com carinho, defendendo-te, porém, de arranhões de umas e fraldas mal postas de outras. Reserva à amizade o largo território que lhe é próprio. Cultiva teu gosto ou tua mania, desde que não perturbem o próximo. Sê feliz, na medida do possível, isto é, daquilo que está em teu poder: fugindo ao aborrecimento e amando os ócios tranquilos, num lugar de sombra ou de sol.

carlos-drummond-de-andrade
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