Imagens experientes

Há muito que eu não ouvia falar naquela mobília de quarto — a mobília que ilustra, mais do que nenhuma outra, o fluir das coisas humanas. Pois foi fabricada para um palácio de governo, de onde passou a um orfanato; do orfanato rumou para o quarto de um verdureiro; deste para a casa de um vendedor de autopeças; daí para uma pensão chamada alegre.

Encomenda oficial, doação, rifa, vendas sucessivas, tudo a mobília conheceu; foi moldura para as preocupações e vigílias de um presidente de Estado e assistiu depois à sua morte; quase que acolheu um rei famoso e sua rainha; produziu dinheiro para educar crianças jogadas ao mundo e para casar uma donzela; finalmente, serviu ao prazer carnal de muitos.

Quanto a esta última serventia, presumo que tenha sido indireta. A proprietária da pensão, que o foi também de um cabaré conceituado, era pessoalmente dama austera e leitora de Unamuno, e decerto não facultou o uso de tais peças à clientela do estabelecimento; reservou-as para si, e desse modo atuaram apenas como acessórios da central administrativa. Mesmo assim, muito terão aprendido em negócios humanos e a experiência dos móveis é riquíssima. A história não escrita de Minas Gerais e um pouco da brasileira são, em parte, segredo daquela cama com dossel de três metros de altura, daqueles dois criados-mudos, e mais da penteadeira, do lavatório, do guarda-vestidos e do guarda-casaca, vitorianos e silenciosos.

A última notícia que tivera deles foi em 1955: recolhendo-se à vida meditativa, sua última proprietária negociava-lhes a venda ao poder público, como que os restituindo à origem sacral. Mas o poder, sempre mesquinho na avaliação do mérito imponderável das coisas, oferecera apenas 60 contos pelo lote, e recebeu esta resposta ofendida: “Prefiro queimar a mobília. Só não queimo porque sei dar valor ao que é histórico”. E assim confirmou a dama a fibra espanhola que todos lhe admiravam.

Vejo agora, por informação do colunista Wilson Frade, que os móveis continuam em poder da velha senhora, e que esta, urgida pela enfermidade e pelo sentimento filosófico do fim, já não quer negociar o que lhe pertence: em belo gesto, oferece de graça ao Museu de Belo Horizonte os trastes vividos e experientes que saíram do Palácio da Liberdade quando Artur Bernardes reformou a residência oficial para hospedar os reis da Bélgica.

Aqui eu inventaria uma fala da cama e demais pertences da mobília, recapitulando o que viram e aprenderam do mundo; a crônica ficaria cena de teatro, El gran teatro del mundo. Não comprometeria ninguém; seria uma fala sensível e delicada, como é o gesto da doadora; um antologista a recolheria, com sua lição que um catre e um criado-mudo podem transmitir, se quiserem. Não querem. Eu também não. Limito-me a louvar a doadora, que de resto nem carece de meu louvor, ela que, como declarou ao jornalista, já se habilitou para a definitiva residência, aonde espera chegar vestida com o hábito de Santa Teresa de Ávila, de sua especial devoção e autora destes versos sobre o vero amor:

Mira que el amor es fuerte:
vida, no seas molesta;
mira que sólo te resta,
para ganarte, perderte.

 *

P. S. — O Governo revolucionário resolveu trancar o Congresso na hora em que, pela primeira vez nos últimos tempos, ele começava realmente a funcionar. Em todo caso, deixou aberto o Festival Internacional da Canção Popular, para que o silêncio não seja completo no país.

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