Imagens em preto-e-branco

Um semanário francês acaba de publicar a biografia de Greta Garbo, e embora não conte nada de novo sobre esse fenômeno cinematográfico desconhecido da geração mais moça, despertou a atenção dos leitores.

A este humilde cronista, a publicação interessou sobretudo porque lhe abriu a urna das recordações; e ainda porque lhe permite desvendar um pequeno segredo velho de 26 anos, e os senhores sabem como os segredos, à força de envelhecer, perdem a significação.

Passado um quarto de século, considero-me desobrigado do compromisso assumido naquela tarde de outono no Parque Municipal de Belo Horizonte, e revelarei uma página — meia página, se tanto — da vida particular de Greta Garbo.

Está dito na biografia de Paris Match que, depois de recusar o papel de vampe em As mulheres adoram diamantes, oferecido por Louis B. Mayer, a extraordinária atriz se fechou em copas, por cinco meses, em seus aposentos do Hotel Miramar, em Santa Mônica, até obter aumento de salário. É falso. Durante esse período, Greta viajou incógnita pela América do Sul, possuída de tedium vitae, e foi dar com sua angulosa e perturbadora figura na capital mineira, onde apenas três pessoas lhe conheceram a identidade.

Corria o ano de 1929, e como corria: a luta pela sucessão do presidente Washington Luiz assumira desde logo aspecto violento, mas não deixávamos, eu e um grupo de amigos diletos, de frequentar o cineminha local, onde a Garbo, já em pleno fastígio da glória, desbancava todas as “estrelas” do mundo. Certa manhã, pálido e emocionado, o poeta Abgar Renault bateu-me à porta reclamando cooperação. Uma senhora estrangeira chegaria pelo noturno da Central, às dez horas (isto é, às três da tarde, pois o trem vinha sempre atrasado).  Fora-lhe recomendada por um professor sueco, então nos Estados Unidos, e com quem Abgar se correspondia a respeito de poetas elisabetianos. Tínhamos de reservar-lhe aposentos no Grande Hotel, do Arcangelo Maletta, e proporcionar-lhe distrações campestres, mas a senhora fazia questão de não travar relações com ninguém, e se ele, Abgar, queria os meus serviços, era em razão de nossa fraterna amizade.

Tomamos providências e à tardinha vimos descer do carro-dormitório, dentro de um capotão cinza que lhe cobria o queixo, e por trás dos primeiros óculos pretos que uma filha de Eva usou naquelas paragens, um vulto feminino estranho e seco, pisando duro em sapatões de salto baixo. Mal franziu os lábios para cumprimentar o meu amigo, olhou-me como a um carregador, e disse-nos: “I want to be alone”. Depois, manifestou os dentes num largo sorriso, como a explicar: “Mas isso não atinge a vocês”. E de fato, nos dias que se seguiram, mostrou-se cordialíssima conosco, sempre através dos conhecimentos de inglês de Abgar, já então notáveis.

Não tardei, por iluminação poética, a identificar a misteriosa viajante, que dava grandes passeios pela serra do Curral acima, e um dia se dispôs a ir a pé a Sabará, empresa de que a dissuadimos, horrorizados. Revelei a Abgar minha descoberta, e ele, arregalando os olhos, suplicou-me, por tudo quanto fosse sagrado para mim, que não contasse a ninguém. Fiz-lhe a vontade. Os outros amigos ignoraram tudo. Capanema, Emílio Moura, Milton Campos, João Pinheiro Filho, etc., olhavam-nos surpresos ante aquela relação estranha. Explicamos que se tratava de uma naturalista em férias, miss Gustafsson. E a cidade não soube que hospedava pessoa daquela importância. É facílimo enganar uma cidade.

Apenas o Jorge, chofer árabe que nos servia, arranhando vários idiomas, acabou pescando, por uma conversa entre Abgar e a estrangeira, quem era ela. Intimamo-lo a calar-se, sob pena de o denunciarmos como “prestista”. Éramos amigos do governo, e este tomara posição contra o dr. Júlio Prestes, candidato à presidência da República. Jorge encolheu-se, talvez por motivos que sempre desaconselham um encontro com a autoridade.

À véspera da partida, nossa amiga levou-nos a jantar no Grande Hotel e — lembro-me perfeitamente — fixou os olhos na mesa vizinha, onde uma família chegada da Bahia abrangia um garotinho de cerca de dois anos. Greta mirou a testa larga do guri, e disse pensativamente: “É poeta”. Tive a curiosidade de procurar no livro da gerência o nome da família: Amaral; e do neném: José Augusto. E hoje o poeta e crítico de cinema Van Jafa, que, de certo, ignora esse vaticínio.

Saímos ao entardecer para uma volta no Parque, e lá Greta Garbo, mãos nas mãos, pediu-nos que jamais lhe revelássemos a identidade. De resto, ela própria não sabia mais ao certo quem era: as personagens que interpretara se superpunham ao “eu” original. Uma confusão... “Gostaria de ficar entre vocês para sempre, tirando leite das vaquinhas num sítio em Cocais. That’s a dream”. Furtamos um papagaio do Parque e o oferecemos à amiga: reencontro essa ave no texto de Paris Match, dizendo: “Hello, Greta” e imitando sua risada, entre gutural e cristalina... Como a vida passa! Mas, agora eu conto.

carlos-drummond-de-andrade
x
- +