Periódico
Correio da Manhã

Publicada em O gato solteiro e outros bichos, Record, 2022, pp. 157-160.  

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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Imagens, apenas

Um dia os bichos se reuniram para examinar a conjuntura. Não era nada boa. Havia escassez de frutas, sementes, grama, folhagem e outras utilidades. Provisões acumulavam-se aqui e ali, mas o burro não queria mais transportá-las, pois não eram para ele. O macaco, parecendo-lhe vulgar o pulo de um galho a outro, mandara vir de plagas distantes uma geringonça complicada, que o transportava triunfalmente pela estrada real, massacrando pobres centopeias desprevenidas, e despertando ressentimento entre os demais bichos. Latia-se que o preço daquele aparelho correspondia ao de 80 cochos para cavalos velhos, mas não era possível encomendar o material desses cochos. O tatu, no governo provisório dos animais, alegava que não podia fazer nada nesse ou em qualquer sentido, tudo estava muito difícil e vinha do passado; limitava-se a soprar numa taquarinha mágica, pela qual sua voz ia até os sertões mais ásperos, onde espécies infelizes embalavam as mágoas assuntando o mistério da taquarinha. E como a capivara furtava! A capivara já se esquecera de todas as noções, exceto a de furto. Quando se enfarava de furtar do próximo (pois tudo enche) furtava de si mesmo acertando no peso, mudando o cobre de bolso, ou o escondendo para ela própria não achar mais, ou achar e ter a sensação de furtar outra vez o furtado. A milícia de gaviões foi despachada para pegá-la numa “incerta”, mas a capivara tinha coatis de escuta no caminho, e mal viu o cheiro de gavião, soverteu no rio. Os gaviões acharam melhor não incomodá-la, no que foram recompensados, sendo promovidos a pombas rolas. As rolinhas autênticas não sabiam o que pensar. E a vida continuou, desagradável para o elefante, o camelo, a mosca, o jaboti, a zebra, o cabrito, a minhoca, os habitantes do ar, do mato e da água em geral, com exceção talvez do tubarão, que de resto não fazia pequena cabotagem.

A reunião dos bichos, de união só tinha as sílabas finais.Vinham desconfiados e agressivos, cada qual maquinando comer o outro se não lograsse convencê-lo, ou mesmo antes. A ordem do dia comportava a escolha de novo maioral, e aí a temperatura subiu. Os aspirantes se atropelavam. O mais pacífico era o leão, um pequeno leão do norte, que pregava o entendimento entre os animais, e talvez por isso foi logo desacreditado, abandonando a competição. Causou sucesso, pois rápida a variedade de suas evoluções, o peixe-voador, que cantava, bailava e era também o seu tanto elétrico. Mas teve a inabilidade de chamar para junto de si o tatupeba, mais conhecido por papa-defunto, e ninguém deu mais nada por ele; sabia-se que os condores não iam com a cara do tatupeba, e depois eu conto, como diria La Fontaine. Surgiu por sua vez o urso branco, majestoso, solitário, o pelo veludoso mas eriçado de espinhos; ora dava urros tremendos, ora se adoçava em sorrisos; que urso mais esquisito, murmuravam atônitos a lebre e o gafanhoto; o noitibó, sempre pessimista, vaticinou que, no poder, o urso branco mudaria de cor e passaria a dragão. Veio o jacaré, enorme, possante, engolindo tudo, até potes e carruagens. E veio a araponga, de triste martelar; sozinha martelava.

A assembleia estava perplexa e inquieta. Como escolher? O candidato do rinoceronte não convinha à libélula, nem o desta ao sabiá, e cada um votaria a seu modo. Havia o temor de que a cobra de duas cabeças votasse duas vezes, a aranha tantas quantas suas pernas, a mula-sem-cabeça visse os seus direitos postergados, e a cédula do elefante fosse um tijolo arrasador. Então o galo-de-rinha teve uma ideia: não haveria escolha, pois esta seria ruim de qualquer jeito, e o sistema de votar, absurdo. Os bichos seriam submetidos por dois meses a um tratamento moral intensivo. Purificada a natureza animal por meio de leis sábias e violentas, a cobra perderia o veneno, o papagaio a verbiagem, a onça a ferocidade, a preguiça a preguiça, o jacaré a gula, e assim por diante. Uma fuinha ponderou que já tinham sido feitas experiências nesse sentido — muitas — e as espécies estavam na mesma, senão pior; era preferível escolher logo um dos bichos e esperar, não dois meses, mas dois milhões de anos a reforma da criação. O autor da ideia respondeu que faltava à fuinha senso histórico e político. Mas os bichos não se convenceram: quem dirigiria a experiência? Um dos bichos a ser reformado com os demais? E quem o reformaria a ele? E como reformaria aos outros? De maneira simples, explicou o galo-de-rinha: o pau cantará para todos. Ora, quase todo animal tinha no corpo a marca de uma aventura dessas; o tigre perdera o bigode, o leão a juba, a seriema uma asa.... Olharam para o orador, ressabiados, e foram saindo de banda.

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