Periódico
Jornal do Brasil

Publicada em O gato solteiro e outros bichos, Record, 2022, pp. 285-288.  

 

Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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Burle Marx tem razão em botar a boca no mundo, ao ver que o homem, para viver, vai acabando com a vida. Só que em redor poucos o escutam, e sua voz soa como a do profeta clamando no deserto. E é justamente isso que se está construindo por toda parte: um imenso sofisticado, irrecuperável deserto, cheio de tecnologias de conforto, mas onde o apodrecimento e a morte vão instalando seu domicílio.

Será necessário repetir sempre que o homem não é senhor da natureza, mas parte integrante dela, em condomínio a que preside, com a responsabilidade de uma inteligência crítica e analítica, que o obriga a considerar vitais as suas relações com o meio em que se move? Este privilégio intelectual não pode ser usado para proveito imediato que importe em ruína futura, sob pena de tornar-se a negação da própria faculdade de pensar. Seria pensar pelo avesso. Pois é justamente o que fazem inúmeras pessoas interessadas em tirar lucro da destruição implacável dos sítios naturais, com sacrifício da flora e da fauna que eles ostentam.

Aqui são montanhas inteiras que se pulverizam e se exportam, ali são quedas d'água monumentais ameaçadas de desaparecer por imperativo do desenvolvimento, e em todo o país a caça predatória, o aniquilamento consciente de espécimes vegetais e animais indispensáveis à manutenção do quadro natural da vida como processo universal. Tudo isso é expressamente vedado em leis, e para tornar mais taxativa a defesa de tais valores, muitos deles são inscritos em registro oficial, que lhes assegure a proteção direta do Estado. Tem acontecido, porém, que o Estado lhes retire a proteção e submeta-os a um interesse de ordem econômica prevalecente, por admitir que a economia é superior à vida.

Sim, há leis variadas para defender a natureza. Procuram compatibilizar o princípio conservacionista com as exigências crescentes do da organização social. Pena é que, na prática, o texto legal seja ignorado ou entendido hipocritamente. Mesmo esse texto, não raro, peca por duplicidade. Proíbe-se, no artigo, o que permite em outro artigo ou parágrafo casuístico, em que a exceção se torna regra, e só ela é observada.

Veda-se, por exemplo, o exercício da caça  profissional, mas estabelecem-se condições para funcionamento de clubes ou sociedades amadoristas de caça e tiro ao voo, como se o tiro dado pelo amador não fosse tão mortífero quanto o do profissional. É só exibir a carteirinha de sócio, à hora da prisão em flagrante, no caso de aparecer um guarda por perto. Mas sabe-se também que os guardas rareiam. Até o pequeno incômodo é poupado ao caçador, e a fauna do Brasil fica dependendo da boa ou má pontaria de quem gosta de matar, por esporte, ganância ou sadismo.

O preceito geral é este: "os animais de qualquer espécie, em qualquer fase do seu desenvolvimento, e que vivem naturalmente fora de cativeiro, constituindo a fauna silvestre, bem como seus ninhos, abrigos criadouros naturais, são propriedade do Estado, sendo proibida sua utilização, perseguição, destruição, caça ou apanha”. Satisfeitas, porém, determinadas exigências legais, "poderão ser mantidos em cativeiro espécimes da fauna silvestre”.

Que se entende por "manter em cativeiro”? Casas de aves e pequenos animais costumam dar ao substantivo o sentido que antes de 1888 lhe atribuíam os mais ferozes senhores de escravos: tortura. Não é nada agradável passar por um desses cárceres entupidos de gaiolas e caixas minúsculas, onde animais se amontoam à espera de serem resgatados, às vezes para variar de suplício. E aí se chega ao ponto em que nenhuma lei, perfeita que seja, vigora: a relação da pessoa humana com o animal, em casa daquela. Só a educação da sensibilidade, o senso do mundo como unidade vivente e solidária, pode iluminar o possuidor de um bicho, para que no trato diário, ele dê e receba compreensão e amor.

Diante do mundo vegetal, também a educação se faz imprescindível. Não basta a lei, obviamente indispensável. É necessário que alguma coisa mais se filtre no comportamento humano em face da vegetação. Um dia desses, Burle Marx falou que brasileiro tem medo de planta. Eu não diria tanto, embora reconhecendo a indiferença ou hostilidade de muitos com relação a ela. É conhecido o vínculo instintivo que une pessoas humildes às plantas em sua volta. Num vaso de flor, às vezes, o brasileiro despojado do uso de parques e jardins, concentra dose compensadora de ternura. Hoje não há quem não queira ter em casa pelo menos uma begônia, uma folhagem qualquer, para apegar-se a ela como à raiz obscura de sua vida. E a planta lhe dá em troca um pouco de alegria. Mas há a legião dos derrubadores, há a exploração cega dos recursos da terra, e este é a mal que envolve em sua ferocidade tudo que é vida chamada a coexistir com a nossa. Vozes clamantes, como a de Burle Marx, devem ser ouvidas enquanto é tempo.

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