Aquelas coisas da vida

Bicicletas, Ho Chi Minh, antiga Saigon, Vietnã, 1968 circa. Foto de Otto Stupakoff/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Durante uma Conversa de pai e filha, o escritor Antônio Maria ouviu de sua pequena, de mais ou menos 10 anos, que ela estava namorando. Um pai, quando ouve isso da filha pela primeira vez, “sente uma dor muito grande”. Entender que não é só a filha dos outros que namora dá um aperto no coração. Pior é imaginar o namorado, “presunçosamente homem”, que vai beijar a menina no cinema, sentir seu corpo “no enleio da dança”, fazer-lhe ciúmes “de lágrimas e revolta” e rasgar-lhe o coração, enganando-a com outras.

E mais: “essa porcaria de rapaz” oferecerá uísque a ela, que ficará tonta, “com o estômago às voltas”, mas sustentando um sorriso. E tudo o que ele conseguir dela será apenas “para contar aos amigos, com quem permuta as gabolices sobre suas namoradas”. Aí, o pai “se toma de imensa vontade de abraçar-se à filha mocinha e pedir-lhe que não seja de ninguém”. De rogar a Deus que os leve assim, os dois, abraçados, antes que o rapazote possa machucá-la. Mas o pai sabe que esse sentimento é absurdo, mais “egoisticamente irracional” que “ódio de fera”, e se sente um coitado. É preciso aceitar que sua filha, como foram as filhas dos outros durante sua juventude, também beijará na boca.

Naquele momento, então, quando sua cria repetir que tem um namorado, ao pai “humanamente lamentável” só resta fitá-la com ternura para que em nenhum momento sinta que está sendo perdoada, mas acolhida e amada, e dizer-lhe apenas “queira bem a ele, minha filha”.

Ainda mais novinha é a filha retratada na crônica de Fernando Sabino em que um casal se prepara para ter aquela conversa com ela sobre As coisas da vida. Preocupada com a inocência da menina, a mãe acha que é hora de dispensar a cegonha e enfrentar o assunto com mais seriedade. O pai não concorda, diz que a juventude de hoje é mais esperta do que parece, e tenta adiar a responsabilidade. Mas a mulher não cede e encontra a solução em um grupo de mães: um exemplar do livro De onde vêm os bebês, amplamente ilustrado com exemplos de fecundações e gestações as mais variadas.

Tinha de tudo naquele beabá de bebês: abelhas polinizando flores, “cachorrinhos fazendo amor”, “galo em cima da galinha”, o embrião se formando no útero da mulher depois que o homem planta nela sua “sementinha”. Curiosa, a filha recebe o livro de presente e pergunta se é história de criança. “Em certo sentido, sim. É especial para criança da sua idade. Ensina uma porção de coisas”, responde a mãe. Que coisas? As coisas da vida, ora. Livro debaixo do braço, a menina vai para o quarto tomar suas lições.

Mais tarde, pedindo silêncio, a esposa conduz o marido pelo braço para ver a cena: sentada na cama, a filha ensinava tudo o que aprendia ao irmãozinho de 5 anos, que folheava o exemplar com grande interesse. Satisfeitos, os pais se afastam para não atrapalhar a candura do momento. De uma só vez, graças ao livro, eles conseguiram cumprir seu papel de instrutores e evitar constrangimentos.

No dia seguinte, quando a jovem foi para a escola, a mãe recolhe o livro do chão e, ao abri-lo sem querer, é assombrada pelo que vê. Em cada ilustração, a menina tinha acrescentado “detalhes anatômicos de fazer corar um frade de pedra”, como se dizia antigamente. O galo, por exemplo, daquele tamanhinho, tinha ganhado uma gigantesca e saliente protuberância. Imagine, pois, a robustez da proeminência dependurada do cachorro. Todas as inocentes figuras ganharam anexos que, pelo menos, comprovavam a eficácia daquelas lições. Imediatamente, a mãe pensou na pureza do filhinho mais novo, exposto a assustadores órgãos reprodutores: “Não diga que ele viu essa indecência! Meu filho!”, gritou, à procura da criança. Encontrou-o no quarto dos fundos, com a filha da funcionária da casa, “mostrando-lhe, ao vivo, de onde vêm os bebês”.