Barulhos da vizinhança

Fachada de edifício residencial de uma superquadra, Asa Sul, Brasília-DF, 1960. Foto de Peter Scheir/ Acervo Instituto Moreira Salles.

“Quem fala aqui é o homem do 1003”, escreveu Rubem Braga no início de sua crônica na revista Manchete, em um ido outubro de 1954, destinada ao seu vizinho de baixo. “Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento”, continuou. Desolado com sua condição de perturbador da paz alheia, Braga escreveu um Recado ao Sr. 903, dando-lhe toda a razão em pedir silêncio.

“Quem trabalha o dia inteiro”, ponderou o cronista, “tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003”. Quando o 1003 se agita, o 903 não pode dormir. Falava assim em números pois um vizinho ignorava o nome do outro, instalados naquele estranho distanciamento de vizinhança. O apartamento de Rubem Braga se limitava “a leste pelo 1005, a oeste pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903”. Todos esses números eram comportados e silenciosos, com exceção do 1003 que, junto do oceano, funcionava “fora dos horários civis”, bramindo agitado ao sabor da maré, dos ventos e da lua.

“Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número”, concluiu. O cronista prometeu silêncio, mas não pôde deixar de expressar seu desejo em “sonhar com outra vida e outro mundo”, um mundo em que um homem batesse à porta do outro às três da manhã, atraído pela música. “Entra, vizinho, e come do meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela”, responderia. E o vizinho se somaria com a esposa, e todos cantariam, agradecendo “a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa”, e beberiam ao dom da vida e à amizade entre os humanos.

Essa realidade estava, como ainda está, bem distante da nossa, pois “uma das máximas básicas da boa educação e das boas maneiras decreta que jamais se dirija a palavra a um desconhecido”, escreveu Rachel de Queiroz, incluindo os Vizinhos, cuja existência deveria ser ignorada tanto quanto possível. Segundo tais normas, a socialização só deveria se dar dentro da própria roda de parentes e amigos, e “a mais sublime prova de distinção” que alguém poderia dar é “declarar que reside há dez ou 20 anos no mesmo apartamento e desconhece até mesmo o sobrenome do casal que mora em frente”. Só gente ruim de coração, ou com imensa vocação eremítica, poderia querer viver por esses princípios. Até porque, apontou a cronista, o desinteresse costuma ser de mentira, já que “a humana curiosidade”, a que chamamos de fofoca, nos leva a indagar não somente o sobrenome do casal como também as suas histórias íntimas e suas relações domésticas. Mas isso fazemos em segredo, pois em público “nada é tão maravilhosamente bem como mostrar-se uma pessoa aloof, solitária e inacessível”.

Às vezes acontece o oposto, e todos os olhares da vizinhança são atraídos para um morador extravagante, como no caso daquele senhor alemão que se mudou para a rua de Paulo Mendes Campos em Petrópolis. O alemão criava bichos por ofício, e embora a legislação proibisse a criação de animais domésticos, ela nada dizia a respeito das espécies selvagens que circulavam pelo seu terreno. Leões, tigres, macacos, onças, serpentes, zebras, camelos e até hipopótamos transformaram a pacata região petropolitana num cenário de filme de Tarzan.

De noite, ruídos e zurros intranquilos da bicharada; de dia, “os crepúsculos tranquilos da serra” se animavam com “os gritos das feras enjauladas” – mal enjauladas, no caso, pois rara era a semana em que não escapulia pelo menos um macaco da gaiola. Um dia, uma onça fujona foi vista “rondando pelas cercanias”. Em outro, uma zebra se perdeu mata adentro. E do enorme jacaré que desapareceu não se soube o fim, para o pânico total de Petrópolis.

Perturbados e vulneráveis, os moradores da vizinhança estudavam maneira de demonstrar em juízo que se a lei proibia a criação de animais domésticos, o veto à criação de animais selvagens estaria implícito “no bom senso de cada um”, com exceção do alemão. Enquanto isso, o cronista lamentava não ter mais dez anos de idade “para viver com inenarrável orgulho a glória de ser vizinho de um tigre de Bengala”.