Cronistas, sambistas e chorões

Pixinguinha e João da Baiana, Rio de Janeiro-RJ, 1967. Foto de David Zingg/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Rachel de Queiroz estava sossegada em seu canto quando o rádio começou uma homenagem ao compositor Noel Rosa. Noel, prodígio do samba que viveu só 26 anos, “não tinha queixo, não tinha dinheiro, não tinha saúde”. Em outras palavras, “era feio, era pobre e era tísico. Matéria-prima especial para poeta, em verdade” – afinal, a “figura de poeta que concebemos e cultuamos é aquele que anda mendigando uma média, e põe pela boca os pulmões junto com a alma”. Algum desavisado poderia dizer que “Noel não era poeta, era sambista”. Ora, pois fique sabendo: “Todo legítimo sambista é poeta, enquanto nem todo poeta é sambista, isso sim”. E o “autêntico poeta que não é sambista” certamente trocaria “sua lira e sua musa” por um samba, “um bom samba”.

Rachel ouvia atenta a programação do rádio. E quando tocou “Último desejo”, uma das composições mais tristes e belas do nosso cancioneiro, aquela que diz “Nosso amor que eu não esqueço/ E que teve o seu começo/ Numa festa de São João”, ficou comovida. Especialmente pelo verso em que o poeta declara que seu lar é o botequim: “Noel confessava isso batendo no peito, se culpando”. Porque lar “não é onde se dorme nem se come, mas onde se ama e se sonha. No botequim nos conquistam, no botequim – hélas – nos abandonam, no botequim choram a dor do amor traído, no botequim nos recuperam muitas vezes, com ajuda da vitrola e da saudade”. Sabia tudo esse tal de Noel Rosa.

Falando em boteco, quando saía a pé, Antônio Maria gostava de parar num Barzinho de varanda e tomar um chope, ou vários, “em companhia de velhos amigos que chegam de repente”. Entre eles, Ciro Monteiro, o cantor e compositor que transformou a caixa de fósforos em instrumento e fez dela sua marca registrada. Ciro contava histórias de rir ou de chorar, “mas sempre uma conversa mansa, de quem não tem medo do futuro nem ciúmes do passado” – nunca, por exemplo, disse que “estivesse atravessando qualquer crise” ou “que o Brasil vai mal”, jamais se queixou que fulano “o perseguia ou que Deus tenha sido, um dia, ruim com ele”.

Tomando um uisquinho “devagar e sem gelo”, Ciro dizia que o grande amor de sua vida era sua esposa Lu – mas depois do Flamengo, é claro. Fazia questão de ser velado com um bandeirão do clube. E sempre que oferecia um almoço, dava uma camisa rubro-negra a cada convidado: “Fica todo mundo vestido de Flamengo, comendo e bebendo”. Apelidado de Formigão por ser um voraz consumidor de doces, mas não só, Ciro sabia desfrutar a vida. Na companhia dessa boa levada, Maria topava passar “horas sem querer voltar para casa”, comendo fritadas de camarão e conversando à toa.

Também ele compositor, Antônio Maria transitava bem pela cena musical do Rio de Janeiro, da fossa ao samba, embora com reservas à turma da bossa nova, o que fica para outro momento. Certa vez, filou um almoço na casa de Pixinguinha, que, diferente do amigo Ciro, era vascaíno e dispensava a obrigatoriedade de traje flamenguista. “Pixinguinha”, escreveu, “é uma coisa muito boa. O que sai de dentro dele contém a mesma inocência de que foi feito o ‘Carinhoso’”. Acompanhado de Cerveja e amigos – mais precisamente Paulo Bittencourt, Di Cavalcanti, Mário Cabral, João Condé e Vinicius de Moraes –, Maria passou a tarde toda na companhia de Pixinga, que antes de servir o almoço soprava o saxofone com vigorosas bochechadas.

“No arraial de Pixinguinha havia um tanque de cimento, cheio de blocos de gelo, onde ficavam os vinhos e as cervejas.” Naturalmente, foi ali que Maria firmou ponto, maravilhado com a descoberta de “uma cerveja branca, muito densa”, recomendada pelo anfitrião como “a melhor do mundo”. E era mesmo. O cronista armou “uma espreguiçadeira ao lado do tanque” e lá ficou. Nem o anúncio de que a mesa estava posta foi capaz de demovê-lo – tiveram que levar um prato até ele, que ali mesmo dormiu, “com o prato no colo”. Se Di Cavalcanti não tivesse se lembrado de checar se o amigo estava vivo, provavelmente Maria teria dormido a noite toda naquela casa de bamba.

Mas o samba se faz mesmo é na rua, sem nome, na boca do povo. À Noitinha em Vila Isabel, uma família de classe média alta, em torno da qual Rubem Braga escreveu uma crônica bastante sensível, é surpreendida por um batuque que vem de fora, aos poucos: “De longe vem um rumor, um canto. Vem chegando. Toda gente quer ver. São 15, 20 moleques”. Todos com menos de 15 anos. “É uma garotada suja”, que vem andando e cantando um samba, “batendo palmas para a cadência”. Passam “cantando alto, uns rindo, outros muito sérios, todos se divertindo extraordinariamente”. Quando o coro termina, “uma voz de criança canta dois versos que outra voz completa”, e o movimento recomeça. Andam depressa “como se marchassem para a guerra”. E assim a muvuca compassada vai passando, atravessa a realidade daquela família tão distante da alegria genuína e dobra a esquina. “Ide, garotos de Vila Isabel. Ide batendo as mãos, marchando, cantando”, diz o cronista. “Ide, filhos do samba, ide cantando para a vida que vos separará e vos humilhará um a um pelas esquinas do mundo.”