Fonte: Vento vadio: as crônicas de Antônio Maria. Pesquisa, organização e introdução de Guilherme Tauil,Todavia, 2021, pp.162-163. Publicada, originalmente, em O Jornal, de 05/03/1964.

Numa entrevista de televisão, o repórter perguntou a Pixinguinha:

– Dizem que você, quando parar de beber, vai morrer. É verdade?

E Pixinguinha, abrindo os braços e o sorriso, respondeu:

– Então eu não vou morrer nunca!

Pixinguinha é uma coisa muito boa. O que sai de dentro dele contém a mesma inocência de que foi feito o “Carinhoso”. Não sei se Pixinguinha é bom porque bebe ou bebe porque é bom. Sei que ele é bom e bebe.

Uma vez, teve uma “coisa”. Foi em 1948, se não estou enganado. Estávamos na Rádio Tupi e vi alguém entrar, correndo, num estendido. Fui ver. Lá dentro, estava o mestre Benedito Lacerda, debruçado no piano, chorando como uma criança. 

– O que é que foi, Benedito? 

– Eu estou com medo que Pixinguinha, dessa vez, vá embora. Eu não queria que ele morresse antes de mim. 

Parece que Deus ouviu e Benedito foi antes.

Seria bom se nenhum dos dois tivesse ido. Que os dois ainda tocassem, em dueto, não só o “Carinhoso”, mas aquele fabuloso “André de sapato novo”.

Bons tempos, os de “André de sapato novo”! Nós íamos com Paulo Bittencourt, Di Cavalcanti, o “saudoso” Mário Cabral e, quando estava no Rio, Vinicius de Moraes para a casa de Pixinguinha. Mal chegava, Paulo Bittencourt ia direto para o ganzá. Recordo-o, de pé, o ouvido muito atendo ao ritmo, os olhos pregados nas bochechadas de Pixinga que soprava o saxofone. Era um sax bonito, presente do Paulo, comprado, na época, por 65 mil cruzeiros (preço de um automóvel). Mário Cabral, de perfil, numa cadeira de balanço, se enlevava. Di Cavalcanti fazia passos de dança recordando os tempos áureos de Zaíra Cavalcanti. Ao fundo, João Condé sorria, balançando a cabeça com gratidão, como se toda aquela festa fosse oferecida a ele.

No arraial de Pixinguinha havia um tanque de cimento, cheio de blocos de gelo, onde ficavam os vinhos e as cervejas. Os vinhos eram da marca Telefone e as cervejas, “barrigudas”. Foi lá que bebi pela primeira vez uma cerveja branca, muito densa, da mesma marca das “barrigudas”. Parando um instante de tocar (Paulo jamais parou), Pixinguinha me levou para um canto, abriu a cerveja e ordenou:

– Beba esta, que é a melhor do mundo.

E era mesmo. Armei uma espreguiçadeira ao lado do tanque e fiquei bebendo. Quando chamaram para o almoço, cadê pernas para me levantar? Trouxeram-me o prato e comi sentado. Ali mesmo dormi com o prato no colo e já era de noite quando Di Cavalcanti se lembrou de investigar se eu estava vivo.

Não sei há quanto temo bebi aquela cerveja poderosa, nem quantos anos faz que não me encontro com Pixinguinha. Os dois, porém, fazem-me muita falta. Todas aquelas pessoas presentes ao almoço, as que morreram ou viajaram, todas, todas me acenam de onde estão, com as mãos, os olhos e os cabelos tão jovens. 

antonio-maria