Um prazer enfumaçado

Umeji Ohara, avó de Haruo, Chácara Arara, Londrina, Paraná-PR,1951 circa. Foto de Haruo Ohara/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Dentre as Coisas deleitáveis que Paulo Mendes Campos enumerou, além de “arrancar os sapatos depois do baile” e “foto em que a gente fica mais bonito do que é”, está um “cigarro depois do café da manhã, sobretudo de manhã fria, no interior”. O leitor que fuma há de concordar com o cronista. O que não for chegado, bem, esteja avisado de que, hoje, é melhor tapar o nariz e tomar alguma distância para evitar a fumaceira – mas não a ponto de perder de vista essas preciosas crônicas sobre o hábito de fumar.

Sem pedir licença aos antitabagistas, Otto Lara Resende fez o elogio da última tragada em A guimba e o reflexo – aquela que “desce pela árvore brônquica e, perfumada, se infiltra pelas vísceras e acelera o ritmo cardíaco”. Vindo depois do cafezinho, o trago é tão satisfatório e profundo que “chegaria à cauda, se você tivesse cauda para prolongar esse enfumaçado prazer”.

Além do incontestável agrado instantâneo, o cigarro ainda dá ao fumante certo charme (este sim, bem mais discutível). Isto é, alguma personalidade dinâmica, envolta em pequenos rituais de gestos, sons e silêncios. Quando Rubem Braga escreveu sobre Sartre, simpatizou com “o fumo forte” daquele “homem pequeno, feio, de olhos vesgos atrás dos óculos”, que acendia seus cigarros “com os fósforos tirados de uma caixa grande, dessas que as cozinheiras usam”. Enquanto morou em Paris, Braga o encontrou algumas vezes. Lá, trabalhou como correspondente do Correio da Manhã, onde publicava crônicas diárias e entrevistas com vários artistas e pensadores – dentre muitos outros, Giuseppe Ungaretti, Jean Cocteau, Pablo Picasso, Thomas Mann e Jean-Paul Sartre.

Alguns anos depois, aliás, sem nenhuma intenção, Sartre seria o responsável pela famosa empreitada editorial de Braga e Fernando Sabino. Para aproveitar a passagem do filósofo pelo Brasil em 1960, os dois inventaram de compilar os artigos que ele escreveu sobre a revolução cubana para a imprensa francesa. Em uma semana, estavam traduzidos os textos de Furacão sobre Cuba, o título de estreia da Editora do Autor, a mais importante casa para o estabelecimento de crônicas em livro.

Mas falávamos de nicotina. À época em que publicou Um sonho de simplicidade, Braga ainda não tinha sido operado por conta de um nódulo no pulmão direito e estava muito distante de enfrentar o câncer de laringe que o levaria em 1990, mas já questionava a razão de fumar tantos cigarros: “Eles não me dão prazer algum; apenas me fazem falta. São uma necessidade que inventei”, concluiu. O cronista não deu indícios de que queria superar o vício. De todo modo, reconhecê-lo seria o primeiro passo para abandoná-lo. Mas dar cabo à tarefa é que é o diabo.

Ao escrever sobre O homem e o cigarro, José Carlos Oliveira se detém sobre um homem que, sofrendo “rouquidão, pigarro, um espasmo seguido de vômito ao amanhecer, ao primeiro cigarro”, decidiu parar. “E, com efeito, ele parou um dia inteiro, tempo suficiente para verificar que o problema era mais complicado.” A angústia que toma o renunciante é implacável e se manifesta o tempo todo, com todo aquele gestual ritualístico desacostumado a não ter o que segurar: “O fumante arrependido descobre que suas mãos se movimentam ansiosas em todas as direções”.

Não por vontade própria, Antônio Maria diminuiu o cigarro depois de infartar, em novembro de 1962. Na verdade, a recomendação médica era de que deixasse de fumar, além de que adotasse uma dieta radical e reduzisse as horas de trabalho. Maria aceitou a dieta e o descanso, mas negociou o fumo. Paciente e doutor entraram em um consenso que, hoje, soaria absurdo: oito cigarros por dia era o limite. “Os oito permitidos com mais oito que fumo escondido, são 16. Dá para viver. Ou para morrer, sei lá”, escreveu em Página de um diário. A solução foi trocar os cigarros por um cachimbo Dunhill, que Maria mandou trazer de Londres: “Diz que a gente bota o cachimbo na boca, fica escrevendo, o cachimbo apaga, a gente acende, ele apaga... Fica-se nisso e o dia passa, com apenas uma carga do bom fumo inglês”.

Fernando Sabino foi outro que abandonou o cigarro. Quer dizer, mais ou menos. O cronista conta que começou a fumar aos 20, “corrompido” pelo amigo Hélio Pellegrino. Desde então, entregou-se “alegremente ao vício abominável”. Em certa madrugada chuvosa, o cronista se viu “sem um só cigarro em casa” e saiu pelas ruas, incapaz de dormir sem o trago. Andou “como uma alma penada pelas ruas escuras e molhadas” e nada de encontrar um boteco aberto. Estava já determinado a tomar um táxi e “mandar seguir para o quinto dos infernos, onde quer que houvesse cigarros à venda”. De repente, porém, entre relâmpagos que cortavam a noite, deu-se conta da “escravidão que aquilo significava” e bradou para os céus: “Nunca mais hei de fumar!”. Teria sido esse O último cigarro do escritor.

No primeiro dia, fumou cigarros imaginários. Tudo bem. No segundo, já respirava melhor, sem corizas. No terceiro, enlouqueceu e teve ímpetos violentos. Mas, agarrando-se com todas as forças ao seu novo vício, o de não fumar, resistiu. Atravessou quase dois anos ileso, sem recaída, até que, depois de um jantar, meio que para provar que deixara mesmo de ser fumante, aceitou com naturalidade um cigarro que lhe ofereceram. “E assim foi: a partir de então, um cigarrinho aqui, outro ali.”

Pouco importava que, depois de tanto tempo, tivesse retrocedido. Que voltasse a fumar tantos cigarros quanto antes, desde que, é claro, estivessem “na boca de alguém que, por convicção, havia deixado de ser fumante”. Tudo na vida é mesmo uma questão de convicção.