Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 31/12/1968.

Capítulo 1

Na sala queimada pelo sol, ele quebrou o jejum com duas maçãs, uma pera, uvas. Engoliu suas duas vitaminas diárias, Gevral e Benerva, com suco de laranja. E ei-lo que saboreia uma taça de chá, sabendo que isso representa uma traição à sua vontade e a sua saúde. Ele fumava desde os doze anos de idade. Muitas vezes passara fome, sede, toda espécie de necessidade; mas nunca lhe ocorrera separar-se de um maço de Hollywood —  ou então, em Paris, a princípio Gauloises e depois Gitanes. Fumava uns três maços por dia — nunca se dera ao luxo de contar; acordava fumando e ao deitar-se. Acontece que aos 34 anos a garganta começara a sofrer as consequências desse hábito. Rouquidão, pigarro, um espasmo seguido de vômito ao amanhecer, ao primeiro cigarro: era preciso parar. E, com efeito, ele parou um dia inteiro, tempo suficiente para verificar que o problema era mais complicado.

O camarada que renuncia a fumar fica sem saber o que fazer com as mãos. Erguer a mão direita, levá-la à boca, pousar o cigarro no cinzeiro, bater a cinza, acender um cigarro, oferecê-lo a alguém, são todos gestos que acabam constituindo uma expressão da personalidade. O fumante arrependido descobre que suas mãos se movimentam ansiosas em todas as direções, é como a aflição do homem que espera pela cocaína. É preciso fumar: eis tudo. “Estou escravizado à nicotina”, pensou ele, “anseio pela minha morte”.

Mas era um homem valente. Uma vez tomada uma resolução, dificilmente deixava de cumpri-la. Em consequência, teria que criar um método para deixar de fumar, assim como o bêbado procura os alcoólicos anônimos. (“O importante é resistir ao primeiro gole”, dizem os AA). Preceito número 1: evitar, tanto quanto possível, as bebidas quentes. (Depois de uma xícara de café ou de chá, ele fumava nunca menos de três cigarros, e passava o dia tomando cafezinho para estimular o desejo de fumar). Preceito número 2: amansar o paladar por meio do uso de perfumes frios, a todo instante. Escovar os dentes, comer frutas frescas. Depois de cada refeição e ao correr do dia, perfumar a boca com hortelã.

Esse programa estava sendo realizado com algum sucesso, mas o diabo eram aquelas mãos desamparadas, desesperadas, privadas de um movimento repetido sessenta vezes por dia nos últimos 20 anos. E ali estava ele já com o cigarro aceso, açulando o paladar com o chá quente. “Amanhã. Amanhã. Amanhã cumprirei o prometido”, disse ele. E ergueu o cigarro, e chupou a fumaça, e soprou-a pelo nariz, e era tão vertiginoso sucumbir a qualquer vício! (Continua).

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