Assunto, assuntinho & assuntão

Real Gabinete Português de Leitura, Centro, rua Luís de Camões, Rio de Janeiro-RJ, 1890 circa. Foto de Marc Ferrez. Arquivo-Coleção Gilberto Ferrez/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Se tudo pode dar crônica, dependendo, é claro, das artes de quem a escreva, por que o rol de temas não incluiria a palavra, logo ela, instrumento e matéria-prima dos escribas? E não venham dizer que tomá-la como tema seria recurso de autor em crise de falta de assunto. Palavra é assunto, e como!

Sempre foi, aliás. Penso aqui, para começo de conversa, em Machado de Assis, um dos pioneiros do gênero entre nós. Em 1877, o Bruxo do Cosme Velho deliciou seus leitores – e segue deliciando os que vieram depois – com três crônicas em que zombou da xenofobia vocabular do professor Antônio de Castro Lopes (1827-1901). Hoje esquecido, esse xiita do idioma se arrepiava inteiro à simples ideia do contágio do português por palavras provenientes de outras línguas, em especial a francesa. Gastava seus miolos na produção de alternativas nacionais para os execrados galicismos. Em lugar de abajur, por exemplo, sua criatividade acendeu um “lucivelo”. No que dependesse do autor de Neologismos indispensáveis e barbarismos dispensáveis, livro que veio a publicar em 1889, anúncio seria “preconício”. Nada de turista: "ludâmbulo". Que nenhum brasileiro enrolasse no pescoço um cachecol, e sim um “focale”. E que jamais encarapitasse no nariz um pincenê, do francês pince nez, aqueles óculos sem hastes, mas “nasóculos”. Só não se pode dizer que o ruminol (= avalanche) de invencionices de Castro Lopes se escoou sem deixar traço porque dele se salvaram palavras como “cardápio” e, para quem acha piquenique vulgar, “convescote”.

Mais de um século depois, em 1992, a propósito de novidades como “lobista”, Otto Lara Resende, em Palavras inventadas, exumou “cinesíforo”, proposta de Castro Lopes para guinchar de nossa língua o francês “chauffeur”, ainda que nacionalizado para “chofer”. Se escapamos de semelhante bizarria foi graças ao beletrista pernambucano Medeiros e Albuquerque (1867-1934), o inventor de “motorista”.

Sem incidir jamais nos delírios lexicais do professor, o cronista mineiro – aquele que, disparado, mais escreveu sobre questões da língua – nos serve, em Escanção e luas, uma dose de discreto inconformismo ante o fato de que no Brasil não “pegou” o correspondente lusitano para o francês sommelier. Vá alguém, ao escolher o vinho em restaurante brasileiro, pedir a assessoria do escanção, como se faz em tasca lisboeta. Na mesma crônica, a propósito de uma foto de jornal – uma garota sem sutiã, com uma consigna política inscrita entre as duas “luas” e endereçada ao ainda presidente Collor, “Cai fora, Fernandinho” –, Otto faz uma pergunta que segue sem resposta: como se diz topless em português?

O cronista andava, àquela altura, preocupado com o que chamou de “poluição da língua”, alimentada por multidões com “a boca cheia de cacoetes e modismos”. Estava para começar, no Rio, a Eco-92, conferência mundial em torno de questões ambientais, e o cronista sugeriu, em Nós, os poluidores, que se encarregasse os congressistas de cuidar também da limpeza “do nosso instrumento de comunicação”. O que lhe dava “nos nervos” era “essa mania de incorporar à fala o primeiro bestialógico que aparece”. Horrores como “colocar” em vez de simplesmente “pôr”. Outra praga que lhe enchia a alma de brotoejas: “a nível de”. Hoje, se estivesse vivo, já estaria morto de tanto ouvir a onipresente "narrativa". Em Teimosia boba, reclamou da mania de usar o gentílico “norte-americano” em vez de “americano”. “É um assuntinho, sei que é”, concedeu. “Mas é também um desperdício, sobre ser uma bobagem”, já que “as cinco letras de ‘norte’ mais o hífen somam seis sinais”. Detalhe: Otto escrevia na Folha de S.Paulo, cujo manual não dispensava o uso de “norte”. Para constar: nessa crônica de protesto, “norte-americano” comparece sete vezes, o que significa o dispêndio de 42 sinais, mais de meia linha das laudas de então...

Não gostava tampouco daquilo que mais adiante veio a se chamar de “politicamente correto”. Palavras que ofendem se inspirou no noticiário de protestos de índios americanos, os peles-vermelhas, contra a denominação de um grande clube de futebol americano, literalmente os Redskins. Otto não viveu para ver a agremiação, 28 anos mais tarde, ser rebatizada Washington Football Team. “Se a moda pega”, imaginou, “daqui a pouco se levanta uma voz contra chamar de rubro-negro a um torcedor do Flamengo”, uma vez que “a palavra pode ofender ao mesmo tempo índios e negros”. Os chineses poderiam protestar junto ao Itamaraty contra o nome que se dá no Brasil à febre amarela. “Ninguém escapa”, concluiu Otto. Palavras e expressões em todas as línguas escondem silenciosos rancores.”

Nada a fazer, também, contra uma fatalidade idiomática que mereceu dele toda uma crônica, Problemão sem solução: o ditongo nasal “ão”, exclusividade da língua portuguesa. Tente um estrangeiro pronunciá-lo! Além do mais, é rima “paupérrima”. Como lhe veio esse assuntão? É que para a nossa Constituição estava então em cogitação um “emendão”.

Entre Machado de Assis e Otto Lara Resende, Lima Barreto foi outro que se ocupou dos neologismos, e a um deles dedicou No “mafuá” dos padres, em 1919. Irônico, começou dizendo que não tinha a pretensão de contribuir para um dicionário de brasileirismos da Academia Brasileira de Letras, e que apenas passava adiante uma palavra que tinha ouvido no Engenho de Dentro, “mafuá”, “umas barraquinhas que os padres tinham feito lá”, e às quais não faltavam “moças mais ou menos decotadas”. Justificou: “O que aprendo ensino”.

Quatro anos antes, em Exemplo a imitar, Lima Barreto reagira com simpatia à ideia de que os vereadores do Rio adotassem o que já era lei em São Paulo e Belo Horizonte: a obrigação de empregar “língua vernácula” em placas e anúncios. Mas pôs em dúvida a viabilidade de fiscalizar escritos numa língua “tão indisciplinada”. Valeria a pena recorrer a uma comissão de gramáticos, “uma espécie de gente que não se entende”? Agora cético, profetizou: “Estou a ver uma barulharia infernal só por causa de uma inovante postura municipal”. (Cabe a pergunta: como os fiscais veriam palavras como “barulharia” e “inovante”, de sentido claro mas, um século depois, ainda não dicionarizadas?)

Em Médicos e gramáticos, publicada dez dias após a morte do cronista, em novembro de 1922, Lima Barreto ironizou os médicos, que “dão em gramáticos”, pois falam e escrevem numa “língua arcaica”. Já os gramáticos, não gostaram de ver sua seara invadida pelos “esculápios” – e retrucaram implantando nos jornais consultórios gratuitos para leitores com dúvidas de ordem ortográfica e gramatical. Fizeram mais: dedicaram-se também a estudar peculiaridades do linguajar do povo em diferentes regiões do país, o que, segundo o cronista, permitiria a um gaúcho ou acreano tornar-se “carioca da gema” em apenas 15 dias.

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Se Otto Lara Resende lamentou, em Se mais houvesse, o desaparecimento das antologias literárias, que aos jovens de sua geração haviam permitido “beliscar” um pouco de tudo, de cada “prato” tirando “uma provinha”, o confrade Rubem Braga se mostrou pouco saudoso de seus tempos de colégio. “Que ficou daquela assombrosa montoeira de noções que os pacientes professores tentaram meter na minha cabeça?”, indagou ele em Ensino, deplorando que o projeto pedagógico seguisse sendo o mesmo no início dos anos 1950. Melhor seria baixar a bola, para que os alunos dos colégios, tentando “aprender menos”, ficassem “menos ignorantes”. Em 1953, informado de que vinha aí uma reforma do curso secundário – que se compunha então de quatro anos de ginásio e três de clássico ou científico –, o Braga pediu que se livrasse os ginasianos do “tormento inútil” que era o ensino do latim. Não que fosse contra a aprendizado dessa língua morta, que, ao contrário, estava em suas cogitações de “burro velho”, “para ter o deleite de conhecer alguns autores no original”. O problema, argumentou, era “a farsa do ensino do latim do ginásio”.

O mesmo não diria Fernando Sabino, que já burro meio velho se deu conta da utilidade das declinações a cuja decoreba fora submetido nos bancos do Ginásio Mineiro, em Belo Horizonte. A ficha lhe caiu quando, participante de um encontro literário numa cidadezinha da atual Eslovênia, ele tomou um táxi rumo a um jantar – e viveu o pesadelo de não conseguir se fazer entender pela motorista, nos idiomas que falava ou nos quais se virava. Católico, o romancista de O encontro marcado foi salvo, não por Deus, mas por um de Seus representantes neste mundo, e em língua morta, conforme conta na hilariante Basta saber latim.