Com os melhores (ou piores) votos

Avenida Presidente Vargas, Centro, Rio de Janeiro, 1946. Foto de José Medeiros/ Acervo Instituto Moreira Salles.

Imbatível na crônica, Rubem Braga era ruim de voto. Não que fizesse más escolhas políticas. O problema era uma certa incapacidade de seus candidatos, pelo menos boa parte deles, de saírem vitoriosos nas urnas, mesmo quando contavam com a sua força. Nem por isso esmorecia. “Neste momento estou pensando em vários nomes de amigos que gostaria de sufragar”, escreveu em “Voto”, às vésperas das eleições legislativas de 1954, lamentando não poder cravar mais de um nome para cada cargo em disputa: “a amizade é longa e o voto é curto".

Muitos (e)leitores devem ter amado a crônica, na qual o Braga não hesitou em escancarar suas escolhas – mas não ao ponto, parece, de adotarem em massa as preferências daquele inesperado cabo eleitoral. De fato, terá convencido bem pouca gente, se é que convenceu alguém. Seu candidato ao Senado pelo Distrito Federal, o baiano João Mangabeira, ficou na rabeira, com menos de 6% dos votos. Melhor sorte não teve o crítico de arte Mário Pedrosa, que concorria a uma cadeira de deputado federal. O consolo de Rubem foi ter ajudado, ou pelo menos não atrapalhado, a reeleição do escritor Raimundo Magalhães Jr. para a Câmara Municipal.

Tão diferentes das de hoje, as eleições daquele tempo. Voto era no papel, cabendo ao candidato ou a seu partido fornecer as cédulas a serem introduzidas na urna eleitoral, cujo conteúdo levaria dias para ser contabilizado. No caso de Mário Pedrosa, Rubem Braga julgou indispensável incluir na crônica o telefone dele, para eventual solicitação de cédulas – cujas sobras, além de emporcalharem a cidade, não poucas donas de casa se habituaram, pragmáticas, a juntar e costurar à máquina, convertendo sonhos eleitorais, bem ou malsucedidos, em bloquinhos de anotações. Sobreviventes dessa época que então eram crianças se lembram de que pais e mães mandavam o infrator infantil copiar à exaustão, naqueles bloquinhos, alguma frase começando com “Não devo...”, para aprenderem a nunca mais incorrer na mesma contravenção.

Como imprimir material custava caro, o que de saída afastava pretendentes escassamente monetizados, o Braga, em “Eleições”, chegou a sugerir que o Banco do Brasil criasse uma Carteira de Crédito Cívico. Contudo (sigamos aqui no embalo dessa fartura de iniciais C...), o cronista era cético, quando menos no que dizia respeito à Câmara carioca, se é que merecia a palavra “respeito”: “Desde tempos imemoriais”, tratava-se de “uma assembleia desmoralizada”, tradição “tão sólida quanto o viaduto dos Arcos”, contribuindo para fazer do Rio “cada vez mais um resumo do Brasil”.

Indignação não lhe faltava, e ilustração disso pode ser a crônica “Tolice”, com a qual Rubem reagiu a uma declaração aloprada ¬“Basta dizer que o voto de um general vale tanto quanto o de uma lavadeira” – de um militar de alta patente, o general Inácio Verissimo, aliás filho de um acatado crítico literário, o falecido José Verissimo. Como assim, Excelência?! Se “a tolice de uma lavadeira pode redundar apenas no estrago de umas cuecas”, lembrou Rubem, “a tolice de um general pode causar graves transtornos públicos".

Rachel de Queiroz, por sua vez, não escondia o desânimo que lhe causava o nosso espetáculo eleitoral. “No Brasil”, avalia ela em “Cidadania”, “o eleitor não considera o voto como uma pesada e lúcida responsabilidade”, e sim “uma mercadoria que pode negociar”. Por isso não usou meias palavras em “Eleições”: “Elejam quem presta, e não quem paga”. Fez o mesmo em “Votar” – ainda que a disputa presidencial daquele ano, 1960, já estivesse terminada, com a vassoura de Jânio Quadros prestes a aterrissar no Planalto Central: “Dentro da cabine indevassável, não se esqueça de que você é um homem livre”. Frase que conserva ainda hoje a validade, desde que se tenha o cuidado de incluir, ao lado do homem, a “mulher livre”.

Houve uma crônica, “Feliz eleição”, em que Rachel errou o alvo ao exprimir a “alegria invejosa” que sentia dos argentinos, pois eles, depois de muitos anos sob o comando de Juan Domingo Perón, lhe pareciam haver finalmente encontrado o melhor caminho. Ela não poderia prever que sucessivos presidentes seriam depostos, e que em 1973 Perón voltaria ao poder pelo voto, ao cabo de 18 anos de exílio na Espanha. Mas Rachel não se equivocou quando, com justa ira, apostrofou em “O apolítico” a figura nefasta dos que se sentem além e acima dos destinos da Pátria.

Não era dia de eleição o 15 de novembro em que Otto Lara Resende exprimiu um desalento que também segue valendo: “Hoje é aniversário da República”, escreveu ele em “O cortejo e a mentira”, e suspirou: “102 anos, e ainda não tomou juízo”. A aniversariante, como sabemos, segue desmiolada, talvez mais do que naquele 1991 em que o morador do Palácio da Alvorada era o Collor. A retificar na declaração, apenas a contagem dos anos, pois já são 131. Começou mal, nossa República, “instável, pela espada de Deodoro, e continua aí na corda bamba". De lá para cá, o Alvorada teve mais meia dúzia de inquilinos, incluindo o atual, e ainda é o caso de subscrever o desabafo do Otto: “Esse negócio de presidente mentir é uma tristeza. Diz uma coisa e faz outra”.

No ano seguinte, ao encerrar-se a apuração dos votos para a Prefeitura do Rio, com a vitória de César Maia, o cronista preferiu escrever sobre “O charme da derrota”, fechando o foco na candidata Benedita da Silva, do PT, a quem faltaram pouco mais de 100 mil votos para chegar lá, “ao cabo de uma campanha impregnada de lições positivas”.

Brincalhão na conta certa, Otto Lara Resende ainda hoje nos delicia ao tratar como “Vitória da esquerda” as eleições presidenciais americanas de 1992, disputadas dias antes por George Bush pai, que tentava a reeleição, pelo governador de Arkansas, Bill Clinton, e pelo livre atirador Ross Perot. De esquerda, estes três? Parece que só o Otto percebeu a curiosa coincidência: “Três canhotos de uma só vez é dose!”.

Poeta além de cronista, o não menos mineiro Paulo Mendes Campos pouco ou nada escreveu sobre disputas eleitorais, ainda que não fosse a elas nem um pouco indiferente. Até onde a vista alcança, ele não chegou, como o amigo e mestre Rubem Braga, a recomendar voto em fulano ou beltrana – mas nos deixou preciosa recomendação, digna de figurar em suas “Coisas deleitáveis”, e que aqui vai reforçada, se a você chegar a tempo para este 15 de novembro eleitoral: “Votar bem cedinho e ter o dia todo para não se fazer nada”.