O ministro do trabalho mandou ao presidente da república, que a aprovou, uma exposição de motivos sobre o êxodo rural. Não sei para que será usada essa exposição, nem a li na íntegra; o rápido resumo que o Correio da Manhã faz contém coisas sensatas. O trabalhador da roça vem para cidade porque aqui ele ganha mais, e além disso tem o benefício das leis sociais que o protegem.

Não preciso nem levantar da minha mesa de trabalho para sentir quanta gente da roça está vindo para a cidade. A construção ali em frente já chegou ao segundo andar. Muitos dos homens que se movem ali, sobre as caixas de madeira que revestem o esqueleto de cimento armado, são homens da roça. Isso a gente vê pelo jeito, pela roupa; e à noite, naquela obra, como em milhares de outras em todos os cantos do Rio de Janeiro, o que distrai os trabalhadores solteiros que dormem no serviço são violas sertanejas. Quem quiser gravar folclore de muitas regiões do Brasil pode recolher muita cantiga do fundo do mato entre esses imigrantes que dormem nos jiraus e nas redes dos edifícios em construção.

Muita gente tem a teoria fácil de que o trabalhador da roça vem para a cidade iludido, ou de que o sertanejo do nordeste desce para São Paulo e Paraná atraído pela cantiga dos aliciadores de braços. O problema, portanto, é simples. Em primeiro lugar, impedir a atividade dos aliciadores; em segundo lugar, colocar na entrada do Rio e das grandes cidades funcionários-oradores para convencer o capiau de que as cidades já estão cheias de gente, que a vida aquí é miserável, que eles devem voltar para seu rancho, sua cabrocha, seu luar, seu violão... ... Já se sugeriu isto, a sério. Como também já se quis (e de vez em quando essa linda ideia volta)  impedir —simplesmente, fisicamente, impedir — que o roceiro emigre. Como se ele fosse um boi ou um porco, e não um homem, com o sagrado direito de ir, pelo menos dentro desta beldroega deste país, onde o leve seu instinto, seu interesse, seu sonho ou sua tolice.

Um negro velho de Pernambuco, em um engenho de Morenos, me disse esta coisa melancólica, mas bela, sobre a diferença real entre as condições de sua vida no tempo da escravidão e nos tempos de hoje: “agora pelo menos a gente pode escolher o patrão”. Tirar, ainda mais em um país novo, à gente pobre, o direito à aventura, seria a última das ignomínias, e o pior dos erros.

Se os fazendeiros estão assustados, como diz o relatório, com a notícia de que o governo prepara uma legislação social para o campo, não vamos pôr as mãos à cabeça por causa disso. Eles não despedirão indefinidamente seus homens: é desses homens que eles vivem; na hora de colher o café vamos ver quem não quer trabalhador. A mim o que me assusta nessa legislação que se anuncia é que ela possa ser demasiado tímida, ou seja feita sem a ajuda de gente desinteressada que conheça realmente o problema da terra e a psicologia do povo que a trabalha.

Quem se impressiona com a miséria das grandes cidades é porque não conhece essa miséria muito mais funda, mais obscura, das milhões de criaturas silenciosas, disseminadas, perdidas na lonjura das léguas sem fim de nosso mato.

É desses homens que nós todos vivemos. Cuidar deles é cuidar de nós mesmos, de todos nós que formamos esta confusão de coisas, meio aflitiva, mas ainda amorável, chamada Brasil.

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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