29 set 1951

A primeira vez que cheguei a Nápoles...

A primeira vez que cheguei a Nápoles foi por mar; e no dia do desembarque foi afixado a bordo um aviso: “Este porto é mundialmente conhecido pelo grande número de batedores de carteira, trapaceiros e ladrões de toda a espécie. Tenha cuidado”.

Depois disso ouvi histórias pitorescas sobre Nápoles como a de dois escultores e um poeta brasileiros (mineiros, naturalmente, os três) que foram trocar dólares no meio da rua com alguns moleques. Quando a operação estava sendo feita um outro garoto gritou — policial — e todos voaram em debandada, levando os dólares dos brasileiros e deixando na mão deles um “paco” de jornais velhos.

Mas tudo passa sobre a terra. O procurador da república recebeu outro dia uma carta assinada pelo sr. Alessandro D’Atri, que se intitula presidente do sindicato borsaioli napolitano, isto é, dos batedores de carteira. O procurador pensou que a carta fosse alguma brincadeira, mas tendo consultado o chefe de Polícia de Nápoles soube que não. O sr. D’Atri escrevia a sério, em defesa dos interesses da classe de que é líder:

“De algum tempo para cá, excelência, nossa vida está se tornando impossível. O chefe de Polícia, um homem duríssimo e implacável, quer nos reduzir à fome ou ao suicídio. Não podemos nem ao menos subir a um bonde que somos presos. Isto é absolutamente ilegal. Modéstia à parte, já trabalhei em todos os países da Europa, e jamais vi semelhante abuso de autoridade. Em Berlim, em Paris ou em qualquer outra cidade, só fui preso quando colhido em flagrante. Até o momento em que estendo a mão para a carteira de outro cidadão eu sou um cidadão livre. Posso andar em qualquer bonde ou trem, ir onde me agrada. O sr. é um homem justo e não deixará de receber este protesto da gente pobre, que sempre trabalhou no limite de suas possibilidades, com sensatez, e jamais meteu a mão no bolso dos desgraçados”.

Um inquérito feito pela reportagem de Época revelou que efetivamente muitos batedores de carteira de Nápoles tem emigrado para Turim, Milão ou Gênova. Os que ficam passam mal. Os bandos de turistas são prevenidos e protegidos pela polícia. O velho Totonno foi obrigado a fechar sua escola em que ensinava a técnica da profissão. Está agora no Museu da Polícia de Nápoles o manequim com paletó preto que servia para as aulas práticas. Na manga e no busto, esse manequim tem pregadas mais de 20 pequenas campainhas. Os alunos de Totonno não eram aprovados e não tinham permissão para “trabalhar” sem que tirassem em um segundo a carteira do bolso do paletó sem que uma só campainha tocasse, mesmo de leve.

Quanto a Alessandro D’Atri, toda a sua família é de batedores de carteira; o irmão, dois sobrinhos, dois filhos. Só dona Mafalda, sua mulher, não “trabalha”; ela durante anos foi encarregada de visitar a prisão levando, ao batedor infeliz, roupas, comidas, revistas e cigarros enviados pelo Sindicato.

Alessandro D’Atri foi perguntado se um batedor de carteiras pode mudar de vida. “Sim, quando é um amador que opera apenas uma vez... Um verdadeiro artista, um profissional, nunca. Pode passar anos sem trabalhar, mas quando vê ao alcance de seus dedos uma carteira estufando o peito de um paletó, ou fazendo volume no bolso traseiro de uma calça, não resiste”. E contou que de seu sindicato fazem parte quatro surdos-mudos e dois manetas que trabalham com a canhota. 

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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