Um amigo meu foi passar alguns dias no Estado do Rio. Esteve em Teresópolis e depois na Fazenda da Grama. Contou-me que pelo menos nesses dois lugares o jogo é franco. E me diz: “eu não jogo, e não sou contra nem a favor do jogo. Mas se o jogo é permitido no estado do Rio, porque não o deixam funcionar de uma vez na Quitandinha? Assim pelo menos o hotel poderia se manter”.

Eu não morro de amores pelo hotel da Quitandinha porque, apesar de todo luxo e todas as comodidades que ele possuía, sempre me desgostou pelo mau gosto: um pesadelo normando enfeitado ao gosto norte-americano, em um local desagradável. Também não sei se é verdade que há políticos importantes do estado do Rio recebendo dinheiro dos bicheiros e outros senhores de batota. Vamos supor que seja realmente difícil acabar com o bicho — o que não é exato. Se, porém, um cidadão carioca, indo dar uma volta, pelo estado do Rio, encontra, onde vai, o pano verde fervilhando de fichas — ninguém conseguirá me convencer de que o governo fluminense não acaba com o jogo porque não pode.

Se o honrado governador do estado do Rio quisesse acabar com o jogo bastaria que ele dissesse ao seu chefe de Polícia: “acabe com isso”. Talvez apenas fosse preciso acrescentar: “no duro, mesmo”. Se não o faz é porque não se importa que funcione o jogo e que alguém leve dinheiro para deixar que ele funcione; ou porque lhe interessa politicamente a existência de uma “caixinha”, ou apenas por não querer desgostar amigos e correligionários.

Sempre achei, de resto, que a intervenção, na política, dos banqueiros do bicho é menos nefasta que a dos banqueiros de bancos mesmo. Aqueles são interessados sobretudo em que não se cumpram certas leis: estes procuram fazer as leis e os despachos que lhes interessam. Estou certo, de resto, que governo do honrado presidente Vargas não sofre qualquer injunção dos homens de dinheiro — dinheiro legal ou ilegal. É um governo trabalhista, que vê antes de tudo o interesse do povo. E posso dar testemunho de meu magnífico rigor contra os tubarões que pretendem explorar as massas. Já não estou falando desse júri espetacular em que foi sensacionalmente condenado um horrendo açougueiro que furtou cinco cruzeiros. Formidável: o povo, inclusive duas gentis e lindas senhoritas, fazendo justiça pelas próprias mãos! Uma coisa linda: é meio comunista e ao mesmo tempo meio mundana, muito distinta.

Mas o povo pode ficar tranquilo: quando ele não faz justiça, as autoridades fazem. Vi um “tubarão” ser detido em praça pública, e ali mesmo ser despojado de todos os seus bens. Foi no “Jardim de Alah”... numa tarde luminosa e cheia de risos de crianças. O “rapa” enfrentou corajosamente um homenzinho que vendia balões coloridos de borracha. O miserável sonegador dos impostos e, portanto, do dinheiro do povo, teve toda a sua riqueza (12 balões, se contei bem) apreendida e foi preso. Se reagisse, estou certo, seria esbofeteado. As crianças ficaram meio espantadas, sem compreender, em sua inocência, a beleza daquele gesto. Mas eu suspirei aliviado, sentindo que desta vez, sim, a pátria será salva.

rubem-braga
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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