O telegrama
O homem tinha bebido muito e chegou em casa cansado e triste. Da varandinha, quando tirou a chave do bolso, viu um cachorro no canto. Era um cachorro magro e sujo, feio. Enxotou-o com um “passa!” e um gesto. O cachorro levantou-se, mas ficou parado, olhando o homem com seus olhos tristes. “Passa!”. O bicho teve um estremecimento de medo e desceu a escadinha, saiu para a rua.
O homem dormiu, acordou, tomou banho, tomou café, leu jornal, vestiu-se; quando ia saindo, viu que lá estava outra vez o cachorro, no mesmo lugar. À luz do dia ele era mais miserável e sujo. Vendo o homem, ficou a olhá-lo, como pedindo que o deixasse sossegado. O homem bateu com o pé no chão, ele saiu para a calçada. Quando ia dobrando a esquina, o homem viu que o cachorro ficara parado, olhando para sua casa, esperando para voltar. Teve raiva, enxotou-o para mais longe; e como ele não obedecesse logo procurou no chão um pedaço de pedra para jogar. “Não para acertar, pensava. Repugna-me a ideia de ferir esse bicho tão velho, tão doente, tão escalavrado. Será que ele está com fome? Eu podia dizer à empregada para dar comida a ele, mas aí ele se acostuma; e é muito nojento. Parece que esse bicho resolveu morrer na minha varanda”.
O cachorro afinal foi-se embora, e o homem também. Não sabemos onde foi o cachorro. O homem, nós sabemos. O homem entrou em um carro negro, foi para a cidade, subiu em um elevador, entrou no escritório, conversou com outros homens, telefonou, teve um convite para um jantar, abriu várias cartas, inclusive uma da mulher, que estava viajando, outra de um americano que agradecia as atenções que ele lhe dispensara, outra propondo ações de uma nova companhia com um manifesto assinado por uma porção de nomes importantes, outra de um banco com sua conta corrente, outra de um conhecido antigo lembrando uma velha amizade, pedindo um dinheiro emprestado porque sua situação era muito ruim, e mais o cartão postal de uma piazza qualquer de um duomo qualquer, com a letra alta e fina de uma cantora em excursão pela Europa (“está aí, pensou ele, não esperava que ela me mandasse um cartão; pensei que estivesse aborrecida comigo, eu fui meio grosseiro aquela noite, coitada”). E depois o homem voltou para casa, encontrou outra vez o cachorro, enxotou-o, resolveu tomar outro banho, vestiu-se, saiu para o jantar, ficou contente de encontrar duas senhoras bonitas; comeu, bebeu, conversou, disse e ouviu tolices com prazer, marcou um encontro para o dia seguinte com uma daquelas senhoras, bebeu mais, dançou, acabou voltando para casa, encontrando o cachorro, enxotando o cachorro, dormindo. E no dia seguinte também tinha o cachorro, e de noite também, e no outro dia também, e na noite do outro dia também. O homem ficava com raiva, mas logo se esquecia do cachorro, porque quando saía de dia estava pensando em seus negócios e quando saía de noite estava pensando em outra coisa, e durante os outros dias e noites (sempre enxotando o cachorro) ele começou um negócio novo muito bom e se meteu em uma nova história de amor com uma mulher muito bonita, mas uma história meio complicada, ainda que muito interessante.
Não sabemos muito bem o que aconteceu, mas na quinta ou sexta noite a verdade é que o homem chegou em casa muito nervoso e triste, com a cara muito cansada; e quando abriu o portão se lembrou do cachorro. Decerto ele estaria no canto da varanda, talvez morto. Essa ideia lhe veio de repente, um pressentimento de que aquela noite ele encontraria o cachorro morto, e o enxotaria em vão, o cachorro não se moveria, ele não teria coragem de tocar naquele bicho morto, o cachorro ficaria a noite inteira na sua varanda, morto.
Subiu a escadinha, com raiva, olhou. E pela primeira vez, naqueles cinco dias e cinco noites, o cachorro não estava. Teve um estremecimento, como se sentisse falta daquele odioso, daquele miserável cachorro. Teve uma sensação tão ruim, um remorso misturado com raiva, abriu a porta temendo vagamente que o cachorro estivesse dentro da sala, no escuro, mas quando acendeu a luz o que viu foi um telegrama urgente em cima da mesa.
Pegou no telegrama, sentou-se numa cadeira, sua mão estava tremendo, lembrou-se de repente do amigo esquecido que lhe pedira ajuda, sentiu um mal-estar, pensou em morte, não quis abrir o telegrama (“acho que estou bebendo demais; eu sou um idiota, estou com medo; o cachorro pode estar morto na minha cama, meu amigo pode estar morto na minha cama, com os sapatos sujos”) e de repente abriu o telegrama, era a mulher pedindo para ele mandar mais dinheiro, o que aliás ele já providenciara na véspera; e ficou com aquele inútil telegrama na mão, chorando como um menino, chorando com muitas lágrimas, chorando.