Fui apresentado, certa vez, em uma cidade estrangeira, a uma velha senhora brasileira. Vivendo fora do país há muito tempo, ela me fez muitas perguntas sobre o Rio — e a conversa foi correndo cordial até que ela perguntou para quê jornal eu estava trabalhando. Quando eu disse, ela emudeceu, e me olhou de um modo estranho. Logo se afastou, mal se despedindo.
Depois eu tive uma explicação, 30 anos antes aquela senhora estivera envolvida em um doloroso caso; e a maneira pela qual o fato fora noticiado na folha em questão a ferira. E por causa daquele redator de polícia de 30 anos atrás ela ainda via em mim, que há dois meses fizera uma combinação com o mesmo jornal, uma espécie de inimigo…
Um jornal vai criando, através dos tempos, uma espécie de personalidade, muito mais real que a de seus redatores e mesmo diretores. O mais forte e voluntarioso dos homens não consegue fazer um jornal à sua própria imagem e semelhança. Há sempre um mistério no primeiro instante em que ele sai da rotativa: mistério igual ao do nascimento de um filho. Filho de muita gente, porque muita gente o faz e o cuida: filho ainda desse monstro vago, mas voluntarioso e sensível, que se chama leitor. O mais que o fundador ou seu continuador pode fazer (e precisa estar sempre vigilante) é obrigar o jornal a guardar certas regras estritas. Fora disso, o jornal impõe em tudo seu estranho temperamento próprio, cheio de idiossincrasias e venetas. Se o diretor do jornal insistir muito em dominá-lo ele acaba imitando a personalidade de seu jornal, crente de que está lhe impondo a sua…
E cada pessoa que trabalha longamente em um jornal sente-o de um modo diferente; cada um jogou dentro dele alguma coisa de si mesmo, e às vezes se descoroçoa porque não a encontra mais: ela foi absorvida.
Eu, que tenho sido um vagabundo de máquina de escrever na mão, já me surpreendi, visitando uma redação de Minas ou de São Paulo com um vago ciúme daquela gente nova que vejo ali e que não é a de meu tempo…
Amanhã, 15 de junho, o Correio da Manhã faz 50 anos. Quer quisesse escrever sua história, teria de escrever, em grande parte, a história de alguns homens que o fundaram e formaram, a começar por Edmundo Bittencourt. Mas teria de escrever também a história de uma verdadeira multidão, para explicar sua alma complexa e numerosa. No mesmo dia o Jornal de Letras, essa iniciativa um tanto heróica dos irmãos Condé, faz dois anos de vida. Saudemos o cinquentão e o infante desejando-lhes felicidades.
Não olharemos seus números de aniversário com o olho comovido e sonhador dos seus diretores, que nesse dia se debruçam sobre eles como sobre um filho. Mas — colaborador ou leitor — nós sempre olharemos como a alguma coisa um pouco também nossa, fazendo parte de nossa história e de nossa vida.