Vamos arranjar um nome inventado para a cidade: Maranguaia. E também um nome para o coronel: Juca Brito.
Mas que a cidade fique na sua paisagem verdadeira, com o pequeno córrego perene fertilizando vale dentro de um mundo de léguas de caatinga, no fundo do sertão. E o coronel fique na sua varanda, cheia de gaiolas de passarinhos. Ali perto, enjaulados como feras, dois imensos cães dinamarqueses. Um campo para criação de ema. E 一 luxo estranho no sertão 一 pavões reais. Foi o que vimos na visita rápida, quando nosso carro entrou pelo parque da fazenda, entre juazeiros e tamarineiros.
O coronel Juca Brito é dono da casa, da cidade, do município, do sertão, do mundo. Está velho e gordo nas suas roupas limpas. Como entre nós há um amigo seu, ele nos trata bem 一 mas com uma vaga desconfiança. Sentimos que ele tem sempre um pé atrás para os homens que em automóvel ou a cavalo chegam até junto de sua varanda. Como se estivesse perguntando: “que novidade é essa? que vêm fazer estes estranhos? virão pedir alguma coisa?”
Só quando se convenceu de que nós queríamos nada (tive vontade de lhe dizer um verso de Amado Nervo que, não sei porque, desde menino guardei de cor: “somos peregrinos, vamos de pasada, no queremos nada”), a não ser cumprimentá-lo na sua varanda fresca, ficou mais gentil e convidou para o almoço. Mas tínhamos de tocar viagem, agradecemos.
Sabemos, entretanto, que os almoços do coronel são esplêndidos. Um amigo nosso esteve aqui e contou. O coronel se lamentou da estrada federal que agora corta sua cidade, seu sertão: “essa rodagem vai acabar com Maranguaia; passa gente de toda espécie…”
Não, a estrada não vai acabar com Maranguaia: a estrada está acabando é com o coronel Juca Brito. Na última eleição 一 contam na venda, entre duas cachaças que bebemos para tirar o pó da garganta 一 ele só ganhou por 300 votos. Antigamente não havia voto que não fosse seu. Antigamente 一 mas não muito antigamente. Muito antigamente o coronel Juca Brito nem era coronel e não tinha esse mundo de terras. Tinha a sua fazendinha e se fez amigo de um capitão do Exército, que por sinal não era um verdadeiro capitão do Exército, visto que sua patente era assinada (coisa bastante estranha) por um funcionário do Ministério da Agricultura, a mando do Padre Cícero. De resto esse capitão era um grande tático de guerrilhas, tão grande que, como ninguém diz “o general Bonaparte”, também ninguém dizia “o capitão Virgulino”, mas apenas Lampião. Bem, eu ia contando (é uma história que em Maranguaia não se conta, porque todo mundo sabe) que Lampião era amigo de Juca Brito, que muito o ajudou com sua proteção. Em troca do que o cangaceiro dava uns sustos nos fazendeiros e sitiantes vizinhos 一 aqui matava uns animais, ali emasculava um vaqueiro, além aparecia com seu bando e pedia dinheiro 一 de maneira que esse pessoal desgostoso resolvia se retirar, e então Juca Brito comprava-lhes as terras por uma coisa à toa ou nada. E assim o coronel Juca Brito ficou dono de Maranguaia, e dono de tanta terra que até deixa a maior parte sem cultura, de maneira que em Maranguaia, onde havia tanta lavoura, muito antigamente, hoje a lavoura é pouca. Isso é uma história velha: não há mais Lampião e quem o matou foi também a rodagem, foi a estrada rasgando o sertão onde reta se chama “tangente”, levando o mundo para dentro da caatinga. Isso é um mal 一 diz o coronel falando da estrada, 一 passa muito vagabundo e desordeiro nessas “marinétis” e nesses caminhões, e esse povo do sertão é muito ignorante, de maneira que ouve conversa e fica com a cabeça virada; também um homem que tem dívidas ou fez algum mal feito pode fugir num caminhão, de maneira que hoje em dia não há mais respeito à autoridade”.
O que é um exagero: numa casa baixa e comprida como uma antiga senzala, ao lado da casa do coronel, o que vimos foram muitos praças da polícia, de modo que o coronel é respeitado, e isso sem precisar de capanga, porque o governo é que é capanga dele. “Meu filho era deputado federal, mas como eu estou muito velho para ir na capital do Estado eu agora nessa eleição botei ele deputado estadual”. É mentira do coronel 一 com essa rodagem e esse povo ignorante de cabeça virada, ele não podia mais fazer deputado federal; o Brasil está mudando, se estragando, se avacalhando. Pelo menos o Brasil do coronel Juca Brito, o Brasil que ele vê de sua varanda fresca onde o deixamos, com suas roupas muito limpas, olhando um pavão real abrindo ao sol, entre dois juazeiros, todo o milagre de suas cores imperiais.