Não, aqui não é o paraíso terrestre. A professora Zilma me procura para que eu vá ver, já pintadas, as duas casinhas novas que ela ganhou do Sesi. Como esse serviço não funciona em Cachoeiro (onde, entretanto, já arrecadou mais de 1.650 contos), ele procura ajudar qualquer esforço para elevar o nível de vida e educação dos operários — e nas escolinhas novas de Zilma, instaladas em pleno bairro proletário, muitos trabalhadores encherão os cursos noturnos. Mas ela resolve instalar ali também um curso para crianças de cinco e seis anos, filhas de cozinheiras e lavadeiras. “Você acha que eu conseguirei do Saps, no Rio, um auxílio para dar uma sopa ou um pequeno almoço à molecada”? Consiga ou não, resolveu aproveitar o terreno junto para instalar um Clube Agrícola. Assim as crianças serão mais bem alimentadas — e as professoras de todos os cursos de Zilma afirmam que um dos grandes males do ensino é... a fome dos alunos. Ela conseguiu a vinda de um nutricionista que tem também curso de assistência social e enfermagem. “Ontem arranjei foices e enxadas velhas para arrumar o terreno em volta das escolas; os operários logo se ofereceram para amolá-las”.

Mas a campanha de Zilma se dirige principalmente aos adultos. Cachoeiro, como mais ou menos todo o Brasil, tem a sua maior vergonha na miséria das crianças. Não, isto aqui não é o paraíso: no paraíso os anjos não morrem tanto, nem crescem tão doentes e lamentáveis, de cara suja e calças rotas. A alma dessa “Casa da Criança” em franca construção é um cearense que tem menos de cinco anos de Cachoeiro e que é possivelmente hoje o cidadão mais útil desta cidade: o gerente do Banco do Brasil, sr. Raimundo Andrade.

Vamos deixar de lado o esforço tremendo que ele tem feito para levar adiante o campo de aviação, impulso que tem dado à indústria, e sua última decisão, de reunir mil contos para fazer em Cachoeiro um clube moderno. Sua concepção da “Casa da Criança” é totalitária: compreende uma escola maternal e uma creche, entrosadas com a maternidade já em construção junto à Santa Casa, inclui o posto de puericultura, que já funciona, e um jardim de infância, o primeiro da cidade, com um parque infantil. Em fins de junho serão inaugurados o jardim e o parque, cujas instalações já estão ficando prontas — salão de repouso, três salas de aulas, refeitório, cozinha, gabinetes médico e odontológico, salão de jogos internos, auditório com dois camarins subterrâneos, piscina, balanços, escorregas, etc. Andrade reúne o esforço e a boa vontade de vários serviços e instituições. Conseguiu 500 contos da população, arranjou no ano passado 350 do governo federal (este ano ele conseguirá também receber esses 150 contos no Ministério da Justiça e esses 200 no da Educação?), 200 contos do Estado e 100 do Sesi. Para este ano a Prefeitura prometeu 100 contos e o Estado mais 150. Os edifícios já construídos são elegantes, sólidos, com instalações excelentes. Acusam mesmo o cearense de estar fazendo coisa luxuosa. Ele murmura que quer as coisas bem feitas — e “isto préécisa ser bom mesmo, préécisa ser de luxo mesmo, porque é para as crianças pobres”.

Sim, crianças são animais de luxo, uma vez Beatrix Reynal já me explicou isso — ela, que atravessa noites arranjando em embrulhos elegantes, com fitas de cor, os donativos que vai entregar aos doentes ou às crianças que protege: “estou exausta, mas tenho de arrumar bem isso tudo: é para gente de cerimônia”.

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