Parece que cada dia as coisas vão ficando mais conhecidas, mais sem surpresa. O mundo anda cheio de prodígios e, contudo, o homem não quer mais prodígios: boceja de tédio ante todas as maravilhas e pede, como o outro, para ver algo nuevo. Pois felicitai-me, que num dia só tive duas surpresas felizes: descobri um livro e descobri um primo.

Talvez alguém vá dizer que não há novidade em livros nem em primos. Mas é que tudo depende da qualidade. E no caso em apreço livro e primo são raridades preciosas, sendo ainda mais que é o primo o autor do livro.

Vamos primeiro ao primo, o que dito assim vem a ser um pleonasmo, pois primo quer dizer primeiro. Mas vamos ao primo. Não é engraçada a ideia de se pensar que há espalhados, não só em terra nossa como em terra estrangeira pessoas desconhecidas, das quais nunca tivemos notícias, nem mesmo sabemos o nome, que têm nas veias o nosso sangue, e falando e andando usam vozes e gestos idênticos aos nossos, ou que têm o nosso nariz, o nosso ondeado de cabelo, ou a nossa idiossincrasia por pimenta de cheiro.... Não é estranho? Porque os parentes já identificados são entidades conhecidas e deixam de interessar. Mas o parente ignorado, até faz um certo receio. Imagine-se se fosse eu à cidade de Juiz de Fora, ― que não conheço senão de nome e fama ― e visse passeando pela rua um senhor jamais visto antes, mas no qual sentiria qualquer coisa familiar. O andar, um cacoete, uma feição. Mas que poderia eu ter de familiar com um passeante da rua Halfeld, onde jamais pusera meus pés? Seria um desses mistérios do espiritismo e ali estaria encontrando um amigo de passadas encarnações! E quando eu já estivesse sentindo um pouco de medo, porque a verdade é que não gosto de mistérios, alguém me diria o nome do senhor em questão ― e diante do nome eu identificava o primo. Ora veja! Ali, em plenas Alterosas, trazido por ignorada emigração, estava o neto de um avô ou bisavô comum, traço de união da terra que eu nunca vira com as margens da lagoa de Mecejana, onde costumavam nascer os Alencar. Sim, o primo chama-se Alencar, Gilberto de Alencar. Não sabiam que também tenho direito de usar Alencar no sobrenome? Não o uso porque sou mesmo uma modesta violeta. Mas posso. E tanto eu como o meu primo Gilberto somos parentes muito próximos do Guarani, de Iracema e de Lucíola. Nossa vovó Miliquinha, que eu ainda conheci, escutou, na roda de primas, a leitura do Guarani, feita pelo romancista em pessoa, à medida que ia terminando os capítulos. Diz que no primeiro original Ceci e Peri morriam no incêndio da casa de fazenda. Mas as primas choraram tanto, fizeram tal alarido com pena dos namorados que o primo José teve que arranjar um happy-end; por isso inventou a enchente, a palmeira, o feite hercúleo do índio. Depois os entendidos ficaram dizendo que o autor deliberadamente dera ao par um destino alegórico, baseado na lenda de Tamandaré. Pode ser; mas nesse caso a alegoria foi empregada apenas para consolar o choro das primas.

Falemos agora do livro do meu novo primo: chama-se Memórias sem malícia de Gudesteu Rodavalho. Não sei se por causa do parentesco ― mas creio que não ― O fato é que essas memórias souberam-me maravilhosamente. Falei que são memórias porque assim as chama o autor; mas a intenção de quem as fez foi de romance e não sei se a realizou; pois saíram umas memórias tão aparentemente genuínas, que a gente tomaria o livro por nada mais que autobiográfico. E quanta coisa deliciosa que elas contam! Lembraram-me outro livro, lido há algum tempo com enorme prazer: Minha vida de menina de Helena Morley. O cenário é quase o mesmo: as pequenas cidades do estado de Minas. A época também mais ou menos idêntica, ― a penúltima e última década do século passado. E o colorido de autenticidade o mesmo, a mesma despretensão de narrativa, o mesmo desdém pelos grandes efeitos cênicos. A linguagem é que varia, porque a da moça Helena é mais desataviada e corredia, enquanto a do primo Gilberto tem fatura artística excelente e está dentro da melhor tradição machadiana.

Disse antes que talvez não seja o livro um romance. Mas é. Um romance sem acontecimentos, talvez, mas romance. A história de um homem que pensou que a vida esperasse por ele e que após cumprir o que considerava o seu dever, viu, ao “emergir do túnel”, que perdera o trem: a vida tocara para diante, e ele se achava sozinho na estação vazia. Vira-se para um lado, vira-se para o outro, procura as marcas da infância, da adolescência e da mocidade que fora traçando com tanto cuidado, mas viu que mão estranha as apagara. Nada mais restava, só ele. E num tal desamparo e solidão se encontra que planeja mandar pôr no jornal o seguinte anúncio:

“Pequeno burguês casado, à beira dos sessenta anos, instruído, dispondo de recursos, aspirando viver o que lhe resta à moda de 1898, ou por aí assim, gostaria de entrar em entendimento com pessoas que se encontrem nas mesmas condições, isto é, que também tenham alguma coisa de seu. Possuam alguma cultura e desejem ir terminar os seus dias num povoado do interior do país, onde haja porta de farmácia para longas conversas de calçada, ausência de iluminação capaz de atrapalhar o luar nas ruas, tardes plácidas, horas vagarosas e notícias do planeta apenas pelo jornal do Rio, se possível, dia sim, dia não. Para dar tempo de comentar. Também se pode ter em vista como diversão suplementar a bisca de quatro, com o tento a duzentos réis no máximo”.

Sabe, primo, não ponha o anúncio. Venha primeiro conhecer como são as coisas aqui na ilha onde moro. Isto por cá é uma espécie de refúgio, e talvez lhe servisse muito bem. Aqui ainda cultivamos muitos desses prazeres antiquados que a mocidade atual desconhece. Pesca de caniço, bate papo inocente na farmácia ou no botequim. Briga-se por política, vai-se esperar a barca que traz os jornais, quase como no seu Carandaí se ia esperar o trem expresso do Rio. Sei que há diferenças, mas não são muitas, nem chocantes. Se não se joga a bisca de quatro, como você sugere, joga-se xadrez, damas, gamão. Empresta-se jornal ao vizinho, discutem-se as novidades. Tem festa de igreja com procissão, anjos, novena e barraquinhas de sortes. Tem sessões espíritas muito animadas. O velho Solidônio Rodovalho se trouxesse para cá a sua alfaiataria com a tabuleta desbotada da “Tesoura Fiel”, dar-se-ia muito bem. Queria que você visse as rodas de conversa que se formam nos bancos da praia do Cocotá, à sombra das amendoeiras, ou à porta do botequim do seu Pinto, vizinho ao açougue de seu Álvaro. Queria que visse como é animada, inteligente e desinteressada a palestra no estabelecimento do nosso amigo Cajueiro, juntinho à Farmácia, na Freguesia.

Verdade, verdade que há zonas sofisticadas e há veranistas. São a praga do século. Mas afinal de contas não são a maioria; e a gente pode ignorar umas e outros e viver feliz. Venha ver a ilha, primo!

rachel-de-queiroz
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