25 jun 1960

Aventuras de mãe e filha (II)

A filha de D. Orminda se chamava Sônia. (Seria bom fazer uma estatística para ver quantas moças chamadas Sônia e quantos rapazes chamados Sérgio existem no país, nascidos mais ou menos num mesmo período. É impressionante. Seria por causa da revolução russa? Ou influência de Tolstoi? Depois a moda passou, mas, seguida pela onda das Normas e mais tarde das Marlenes.) Pois é, Sônia, esperta e bonita, começou logo um namoro com o inocente Helmut. Quem os visse diria logo uma banalidade ―  que era a atração dos contrários, ela tão sobre a Iracema, lábios de mel e cabelo de graúna, e ele o típico teuto-brasileiro branco e louro, de Novo Hamburgo. Juntos viajavam de bonde, de mãos dadas, quando ele ia para o emprego e ela para a aula de inglês; juntos iam à matinê de domingo, e em companhia de D. Orminda, à sessão das oito, segunda-feira, no Palácio, que era o chiquérrimo, então. Helmut, que não ganhava muito na NYRBA, a companhia de aviação onde trabalhava, nem sempre podia fazer face ao sorvete na Brasileira, complemento habitual do cinema. Mas D. Orminda compreendia, pagava sorrindo. Assim o namoro marchava docemente, pelas trilhas habituais, e talvez desse em casamento, no tempo hábil. Mas surgiu um imprevisto.

Foi Manolo, o imprevisto. Certa manhã, Sônia, sozinha, entrava no elevador, e logo atrás entrou Manolo. A grade fechou-se, a máquina começou a descer, e aí Manolo, sem aviso prévio, sem uma palavra, como se afinal satisfizesse um velho impulso, segurou a menina nos braços; e, feito aquele personagem do poema de Ascenso Ferreira, danou-lhe beijo. Um depois do outro, de sufocar, de parar o coração. Mas, chegando o elevador ao térreo, Manolo largou a menina, quase tão bruscamente quanto a agarrara. Abriu a porta, murmurou qualquer coisa parecida com “desculpe” e saiu em passo rápido para a rua onde ia passando um bonde, em marcha lenta. O rapaz abriu os braços, agarrou dois balaústres do bonde em movimento e foi levado para longe, sem se voltar, como se ainda fosse carregado pelo mesmo impulso que o fizera abraçar a Sônia no elevador.

Decerto se assustava ao pensar na reação dela ― afinal era namorada firme do seu amigo, o bom Helmut, que levava a economizar o fraco ordenado para o cinema e o sorvete semanais; o honesto Helmut que já mandara para casa retratos da pequena, e cartas onde lhe fazia elogio e gabava a sua pronúncia de inglês; o pobre Helmut que lhe tomara a ele Manolo, como confidente, e se queixava das asperezas e dos caprichos de Sônia: “É um anjo, claro, mas às vezes parece incompreensível...”

Quanto à Sônia, ninguém sabe o que pensou. Deve ter sentido principalmente o choque, terrível e delicioso, de ser, pela primeira vez na vida, tratada realmente como mulher. E, no dia seguinte, ao entrar no elevador ― até um pouco atrasado ― Manolo a encontrou lá dentro. Mal sabia ele que, já há uns dez minutos, Sônia subia e descia no elevador, esperando-o. Ela fingiu surpresa, claro: ― “Que coincidência, outra vez!” ―  e a porta se fechou. Mais uma vez ficaram sós.

O bom Helmut foi então abandonado. Sônia dedicava-se toda a Manolo, numa cegueira de amor. Em vão a mãe a advertiu: “Esse moço não serve para você, não tem juízo, é violento; sabe lá se ele é sincero? Homens assim, são inconstantes... dão péssimos maridos! Como é que teve coragem de largar o Helmut, minha filha, tão bonzinho, tão sensato, queria casar direitinho...”

Mas, como seria de esperar, Sônia não escutava conselhos. Mesmo porque toda a energia que tinha estava concentrada na tarefa de levar Manolo ao casamento. Um ano inteiro lhe custou, de paciência, de submissão, aceitando recuos, ignorando caprichos. Afinal venceu, casou na Matriz da Glória, no Largo do Machado, com música de órgão e fila de cumprimentos na sacristia. A repartição da mãe veio em peso, os colegas dele, as colegas dela nos diferentes cursos. Até Helmut veio também trazer o seu presente.

Foi o novo casal morar no apartamento da sogra. Manolo não queria, mas Sônia teimou ― jamais se separaria da mãe! Havia ainda o fator econômico, o noivo acabou aceitando, e Helmut, sem companheiro, mudou-se para uma pensão.

Lua de mel em Petrópolis, felicidade exuberante. D. Orminda discreta, pouco sogra, continuava no emprego, deixava a casa praticamente só para os dois.

E o casamento continuava assim por vários anos ― já se estava em plena guerra, Manolo subira na firma ― quando de repente foi tudo destruído. E imaginem por quê! ― por um caminhão de cerveja.

rachel-de-queiroz
x
- +