Quatorze nasceram. Mal nasceram, porém, foram se ficando pelo caminho, uns de enterite, dois de crupe, um de espasmos, um de umbigo arruinado, e os restantes apenas com dia ou horas de existência, mortos por simples incapacidade de viver. Seis restaram, entretanto, — miúdos, amarelos, raquíticos, cada um com a sua doença ou a sua deficiência funcional. Quer dizer que a perda foi de 57% — proporção de mortalidade escandalosamente elevada até para criação de pintos em baterias, quanto mais para criação de gente.

Enquanto o pai se interessou por aquela ninhada enfermiça, a vida ainda foi possível. Moravam num barraco de uma só peça, coberto de sapé, numa ribanceira de morro por nome Grotinha — nome esquisito e inadequado, pois a palavra grota dá a ideia de água e de molhado e água ali não dá nem em poço fundo. Tem de ser trazida na cabeça, da bica da rua, que fica a cerca de uns quatrocentos metros de distância, afora a subida. E isso quando há água — três vezes por semana, regularmente. Sem contar nas faltas, pois aqui na Ilha a água encanada vem do Rio, sujeita às mesmas irregularidades do abastecimento da cidade, com a agravante de que para cá o cano submarino ainda sofre os percalços do mar, inclusive o assalto de um rebocador que de vez em quando mete nele a quilha e o arrebenta.

Mas assim mesmo em tanta pobreza, enquanto o pai de qualquer modo olhava por eles, a vida ainda era possível: tinham uma conta limitada no armazém, uma vez por outra recebiam dinheiro para uma roupinha ou um lençol, alguma lata de leite condensado para o menorzinho. Houve até algum natal em que ele lhes levou bacalhau e castanhas.

Mas era homem casado, e por capricho jamais largou da esposa legítima, ao longo de toda aquela aventura procriativa que já durava há vinte anos. Os quatorze partos da amiga e os seus seis resultados vivos creio que o não impressionaram muito, não lhe pareciam nenhuma demasia em matéria de atividades extraconjugais. Não se reconhecia nenhuma obrigação — o pouco que fazia ainda era por favor, de bonzinho, — os filhos não eram seus de tinta e papel, não é mesmo? Nem filhos naturais se podiam dizer, tinham nome pior, bastante feio e vergonhoso: filhos adulterinos. E a idiota da mãe, por humildade, por debilidade, por fraqueza, achava que era isso mesmo, o mundo é assim, ela é que não tinha tido sorte. Quantas por aí, ordinárias, vagabundas, e não carecem de nada, nem se ocupam em nada, enquanto ela jamais soube o que foi viver longe da tina de lavadeira.

E lá um belo dia o homem aborreceu-se de vez daquela carga, daqueles meninos amarelos e doentes, da mulher já desdentada, um feixe de ossos, o cabelo alinhavado — e abandonou tudo, mudou-se com a esposa para o Rio.

As crianças aí estão morrendo aos poucos de fome. O menorzinho, já tísico, não pode nem sequer internar-se num hospital, para não contaminar os outros doentes. Segundo informou uma autoridade que a pobre da mãe afinal consultou, nada lhes resta a fazer. Não podem alegar o nome do pai, não podem exigir alimento nem assistência, — porque o pai é casado, e não os reconheceu nem reconhecê-los poderia, por causa do ferrete daquele nome feio acima citado que além de lhes tirar o pão da boca ainda os marcará para a vida inteira.

Parece até coisa dos tempos de antes de Cristo, quando os filhos pagavam pela culpa dos pais, e sendo filhos de pecado, ficavam também malditos como o pecado que os gerara. Embora o pecador principal esteja imune e fagueiro, — pronto até para outras, que ainda é homem forte, mal chegou aos cinquenta, e continua a detestar a esposa como a detestava há vinte anos atrás, quando procurou aquela que depois foi mãe dos quatorze filhos. Fagueiro e irresponsável, sem ter que prestar contas a ninguém, antes com a lei por trás de si a ampará-lo, e a cadeia de boca aberta pronta para engolir a quem quer que o chame de feio.

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E tem gente que defenda uma lei dessas. Tem até um homem que subiu agora a ministro e que na Câmara se bateu como um fanático para que essa vergonhosa injustiça seja consagrada, regulamentada, ampliada.

Pois a história que contei, se parece extraordinária por causa dos quatorze filhos, não será extraordinária na sua essência, é ocorrência diária na crônica da miséria nacional. Está a toda hora acontecendo — apenas com menos filhos — dois, três, cinco órfãos de pai vivo, desamparados de qualquer assistência, postos fora da lei já desde o ventre materno, pagando não só pelo pecado original, o que já é carga bem dura, mas pelo próprio pecado que os pôs neste mundo sem justiça.

rachel-de-queiroz
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