Sempre estranhei que os nossos artistas plásticos nunca hajam se voltado para o campo de futebol. Aí se encontra uma riqueza de formas e de cores, animada pela mais generalizada emoção brasileira, que os pintores e escultores só ainda não descobriram porque andam mais ocupados com as notícias que lhes chegam sobre a pintura na Europa do que com aquilo que veem. (Ler artigo de Flávio de Aquino no número de aniversário de Jornal de Letras e o de Antônio Bento, nesta página, edição de sexta-feira passada).
Chega a ser estranha a cegueira de nossos artistas para com as coisas que estão mais perto de nossos olhos e mais perto igualmente da grande emoção pública. Ainda há pouco, líamos uma reportagem de uma revista inglesa sobre o futebol e as artes plásticas na Grã-Bretanha. Não pareciam excepcionais os quadros e as esculturas em arame ali mostrados, mas denunciavam sensibilidade aos temas populares de nossa época, fenômeno que é uma constante em todas as grandes fases da história das artes plásticas. Entenda-se quando foi popular a pesquisa da grave beleza e do mistério do corpo humano, os gregos esculpiram as suas estátuas; quando foram populares ao extremo santos e anjos, os grandes pintores pintaram santos e anjos; quando foi popular o aparato dos nobres e dos donos do poder, os pintores deixaram-nos uma série de retratos incomparáveis; quando foi popular a investigação romântica da paisagem, os pintores fizeram paisagem... Pintura é coisa mental na solução individual dos problemas de forma e de cor; os temas, estes se impõem à sensibilidade do artista, que apenas deve ter neste setor a sagacidade de não se complicar nas teorias, quando chegado o momento de escolher o quê pintar.
O jornal não me paga para escrever sobre pintura mas, sem trocadilho, apenas para conformar-me dentro da finalidade de ser mais ou menos pitoresco (ou pinturesco, segundo os puristas).
O que desejo afirmar quadradamente é que, hoje, os brasileiros jogam com os húngaros (ou, como em uma exaltação subconsciente dizem os patriotas do futebol, o Brasil enfrenta a Hungria) e isso paralisa todos os outros assuntos. Menos os assuntos de nossos pintores e escultores, que, abstratos ou figurativistas, pincel e cinzel em punho, procurarão ao pé do rádio criar alguma coisa que os liberte da fatalidade de ser brasileiros, que os faça tão hábeis e tão refinados como os mestres da Escola de Paris, da Alemanha e da Itália.
Meu Deus! A gente quer escrever uma coisa e sai outra! Acho realmente que no futebol existiriam muitas possibilidades para um artista mas, de maneira nenhuma, era cogitação minha dedicar-me no dia de hoje a essa imparcialidade sistemática que demonstram pintores e escultores brasileiros em relação às coisas que nos tocam. Digo mais: minha intenção inicial era falar sobre futebol e literatura... Sobre um romance de José Lins do Rêgo em que ele descreve os lances de uma partida; em versos de Carlos Drummond, de Mário de Andrade e de Pablo Neruda, que se referem ao futebol... Sobre um poema de António Botto, que começa assim:
Eila!...
Tu... avança! Lá vai ela!
Atira-te com alma!…
Defende-a... vamos!... então?
E a bola, ao entrar nas redes,
Suspendeu a alegria muscular
E a juvenil vibração.
E assim termina:
Alguém atira uma rosa
Para os “onze” vencedores,
E ao longe o sol agoniza
— Numa boemia de cores.