Virou moda relacionar os defeitos do brasileiro, um sujeito preguiçoso e incompetente, que há quase 500 anos vive na flauta e, quando se levanta disposto a fazer alguma coisa, parte para a destruição de tudo que é a favor da vida. Nossa autoestima chegou a um tal ponto que somos os primeiros a falar mal desta patriazinha que nos envergonha e que todos desejamos ver pelas costas.

Não sei quando é que começou esta epidemia, mas o fato é que todos, eu também, estamos empenhados em sentar o Brasil no banco dos réus. Na onda de masoquismo que nos assalta, não nos basta repetir a cada hora que o Brasil perdeu o trem da história, que viaja na contramão e que tem o futuro pelas costas. País do futuro, uma vírgula! Aqui ninguém acredita nem que o sol vai raiar amanhã, a menos que seja para exibir ao mundo a fedentina das nossas chagas sociais, nossas imundas feridas que não curamos e já nem ao menos disfarçamos.

Não satisfeitos em expulsar do nosso cardápio cívico qualquer leve perspectiva de futuro redentor, agora invadimos o passado como terroristas sedentos de sangue, doidos para reduzir a cacos o que quer que a gente ache. Começamos em 1500, ou até antes. Vem aí este ano a celebração do 500° aniversário da descoberta da América. O Colombo que prepare o lombo. Seu feito tem quase a idade do Matusalém, neste quingentésimo aniversário. Até outro dia, só faltava elevar o navegador à glória dos altares.

Agora querem botá-lo no tronco, qual negro fujão. Já até duvidam se era genovês. Mas não falta quem tenha certeza de que se tratava de um finório, um carola puxa-saco que foi bajular os reis de Espanha pra fazer a sua viagenzinha pelo Atlântico. Até parece que atravessar os mares ignotos naquele remoto ano de 1492 era como entrar na primeira classe do “Queen Mary”. A onda de maldizer o Colombo entra pela revisão do Cabral e bota pra quebrar.

Revisão, seja na história, seja na política, é espinafração na certa. É como o sujeito que chega pra você e, depois de se declarar seu amigo, anuncia que vai lhe falar francamente. Você por acaso espera que venha de lá um confeito, um agrado ou uma lisonja? Nem ver! Vem pedrada na certa. Porque é seu amigo, diz ele, sapeca na sua cara as coisas mais pesadas e mais grosseiras. Tudo em nome da franqueza de amigão.

Pois com o Pedro Álvares Cabral, a coisa vem vindo num crescendo tal que nem sei como se vai celebrar o quinto século do Brasil daqui mais um pouco. Já li que o almirante, mocinho, conseguiu a patente na base da bajulação. Era um cortesão. Não entendia nem de uma piscina dessas de plástico, quanto mais do mar oceano. Cavou o lugar de comandante da Armada pra levar vantagem, de olho nos tesouros de além-mar e nas honrarias da corte. Era até analfabeto, sabiam? Por isto trouxe com ele o Pero Vaz.

Se o passado começa a ser demolido a partir do Colombo e do Cabral, imaginem se fica pedra sobre pedra nos períodos que vêm em seguida. Que o quê! A colonização é vista só como um impiedoso massacre dos índios — e tudo muito bem planejado para destruir as belas culturas que aqui deste lado do mundo vinham vicejando em paz e harmonia. A gente aprendeu na escola que os selvagens estavam aqui na selva quando chegaram os europeus civilizados. Corta esta!

Aqui estava o paraíso civilizadíssimo, o refinado Éden, o jardim de Academus, uma Grécia de claridade intelectual e de saber profundo. Os selvagens vieram pelos mares de trabuco em punho e puseram fim a séculos de esplendor humanístico. Trouxeram na bagagem as doenças, a culpa, o pecado, a sacanagem sexual, as roupas anti-higiênicas, péssimos hábitos alimentares, como o de cozer a carne e salgar os legumes. Entre outras impiedosas brutalidades, puseram fim à doce tradição da antropofagia. Um horror!

Pela ótica do atual modismo de quebrar a louça da nossa história, o brasileiro como malfeitor existe desde 1500 e há 492 anos não tem feito outra coisa senão a política da terra arrasada. São tantos os nossos crimes e os nossos pecados que não dá pra relacioná-los assim do pé pra mão. Depois do inferno da colonização, que podia ao menos ser holandesa, que diabo, já que não foi inglesa, veio o Império. Aí foi o mais escaldado bovarismo, com dom Pedro 2º fingindo de rei filósofo. Nunca teve um pensamento e ainda assim era o nosso Marco Aurélio, amigo do Victor Hugo e capaz de bater papo em alemão com Nietzsche.

Tudo lá nas Europas, ou aqui em Petrópolis com o Gobineau, um racista francês, esnobe como ele só. Porque o vasto Império estava crivado de senzalas, chafurdado no latifúndio e na monocultura, até que os fazendeiros de café, desgostosos com a abolição, decidiram chutar dom João Banana e aplaudir a República. Nem Fradique Mendes, com a sua História do Brasil pelo método confuso, nem Oswald de Andrade, nem Murilo Mendes, nem ninguém conseguiu espinafrar o nosso passado com o requinte sádico que anda hoje por aí. Brasileiro homem cordial? Uma pinoia! Bonzinho, sim, mas como diz a Kate Lyra. Safado, como demonstrou o Peter Kelleman.

Não vou mencionar os defeitos de caráter e de formação do brasileiro, sub-raça de mestiços, porque seria um não acabar. Preguiçoso, vagabundo, burro, ignorante, desonesto, espertalhão, cruel com o pequeno, mentiroso, lúbrico, depravado, hipócrita, sonegador, machista, iníquo, nepotista, puxa-saco, interesseiro, covarde, medroso...

Estou escrevendo ao correr da máquina e, se não paro, o enxurro esgota um dicionário de impropérios para entrar em seguida num rol interminável de palavrões. Isto é lá pátria que se apresente?

Daí somos todos mazombos, com aquele nariz arrebitado de grã-fina se defendendo do mau cheiro que exala a condição de brasileiro. Saída? O aeroporto internacional. Os capitalistas, os donos dos cafezais e seus apaniguados é que podiam espairecer e flanar o ano todo nos bosques de Viena ou de Paris. Pois lá tem muita floresta. Houve tempo em que, se alguém jogasse uma bomba num hotel cinco estrelas de Paris, na temporada, acabava com a elite brasileira inteirinha. Hoje, nem este privilégio existe mais. Qualquer mequetrefe vai à Europa ou aos Estados Unidos. Está tudo massificado. Tem excursão plebeia bem baratinha. Uma infâmia..

Intelectual brasileiro hoje que não esculhamba o Brasil não merece consideração. Até o Collor, que por ser presidente devia ter um certo compromisso com o otimismo, volta e meia só falta riscar o Brasil do mapa para importar uma pária de porcelana prontinha do primeiro mundo. É a modernidade, um sonho que não nos envergonha, ao contrário da “preteridade”, que é um lixo.

Até os PhD brasileiros são motivo de mofa. Quem é que ganhou um prêmio Nobel? Então metam a viola no saco e deixem dessa mania de querer ensinar o Pai Nosso ao vigário. Sou o primeiro a reconhecer que PhD não é PhDeus e que um burro doutor é mil vezes pior do que um burro não doutorado. Mas desde quando prêmio Nobel é critério pra julgar alguém? Dá vontade de perguntar ao Collor se ele sabe quem foi Henrik Pontoppidan. Ou Grazia Deledda. Ou Ivan Bunin. Ou Halldór Laxness. A relação podia continuar por dezenas e dezenas de nomes. Há outros muito mais obscuros, em todas as áreas do saber e da criação intelectual. Todos galardoados com o prêmio Nobel! Ideia mais convencional, essa de que só o sujeito premiado é quem presta. Daqui a pouco vão dizer que sem medalha e condecoração o cara pode ser entregue aos grupos de extermínio.

Pensem um pouco. Se a gente quiser acabar com a raça da Alemanha, é só lembrar o que o nazismo fez, outro dia mesmo. E a França “défaitiste” do Pétain e do colaboracionismo? Uma vergonha, que o De Gaulle redimiu. E o Japão de Pearl Harbour? E a Revolução Industrial inglesa às custas do ouro das Minas Gerais? Fechou os olhos à miséria dos meninos de rua, que estão no Dickens. Leiam o Swift, chorem com o sarcasmo com que ele critica a maravilha que era a Grã-Bretanha. E a palhaçada do fascismo italiano, com o Mussolini invadindo a Etiópia? E o stalinismo genocida que passava por santo aos olhos do progressismo universal? Tudo isto é história. E é de hoje. E aconteceu nos países civilizados e cultos!

Ah, pelo amor de Deus, vamos parar de falar mal do Brasil. Não proponho o otimismo idiota e alienante do dr. Pangloss, como aparece na propaganda, especialmente na publicidade oficial. Não preconizo fechar os olhos para as nossas mazelas, até porque é preciso curá-las o mais depressa possível. Não estamos no melhor dos mundos, como dizia o babaca do tutor do Cândido. Mas, espera aí, gente, o melhor dos mundos não existe. Até porque seria o tédio na escuridão. Um pouco de fair play não nos fará mal nesta hora. Sejamos sérios, mas não mergulhados nesse sadomasoquismo furibundo. Todos nós que estamos vivos somos mortos em férias. Quem disse isto foi o Chesterton. Pois se a morte é certa, aproveitemos as férias para ver o Brasil com olhos vorazes e generosos, sem esse coro plangente de cassandras descabeladas, arre!

otto-lara-resende
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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