Pelo atalho do Jornal de Letras de Lisboa, vejo que Henry Miller foi redescoberto por Mary V. Dearborn, sua biógrafa. Para fazer ideia de seu pioneirismo com relação a estes tempos fortemente eróticos, bastaria dizer que Trópico de Câncer ficou proibido de circular nos Estados Unidos até 1961. Nascido em Nova York, Miller buscou o exílio voluntário em Paris, em 1930. Morreu na Califórnia em 1980.

A propósito, me lembrei de uma tarde em que Fernando Sabino e eu em Paris encontramos Henry Miller. Nossa amiga Lucy Teixeira lhe tinha escrito uma carta e dele recebera resposta cordial. É possível que este dado nos tenha animado à veneta de procurar o escritor que revia Paris, hospedado a um passo do nosso hotel.

Não custava tentar. Telefonamos e as circunstâncias nos favoreceram. Marcamos o encontro no bar do hotel, junto da praça Vendôme. Podia dar uma crônica ou uma entrevista. Casaco de Tweed, uma grossa camisa quadriculada, Miller estava absorvido na leitura de Le Monde. Era uma deliciosa tarde de abril daquele remoto ano do fim dos anos 50. Num instante nos abancamos. Nada tínhamos combinado, Fernando e eu. A conversa devia fluir naturalmente.

Puxando a brasa para a sua sardinha, Fernando enveredou por uma sessão de jazz que tinha ouvido na véspera. Quando Miller perguntou se não íamos beber alguma coisa, eu quis saber se tinha tempo disponível. Claro, disse ele. Dispunha de uma meia hora. Se tivesse compromisso, não iria fazer cerimônia com os dois brasileiros importunos. Da minha parte, pedi uma cerveja.

Munido de um scotch, Fernando mal continha o seu interesse pela literatura americana e a nostalgia de seus anos em Nova York. Ia na certa falar da “lost generation”. Mas nem Hemingway, nem Scott Fitzgerald vieram à baila. Prosaico, Miller preferiu dar notícia de sua irritação com o trânsito em Paris. Antigamente, antes da guerra, não era assim. O seu francês tinha um sotaque peculiar. Via-se que era americano, mas com uma nota diferente. Talvez nos “rr”.

Devia ter acabado de se sentar à mesa, porque mal tinha tocado no Pernod. Por causa de um título na primeira página do jornal, falou do oriente, que o fascinava. Viria de lá, disse ele, uma onda de religiosidade que se espalharia pela Europa e pela América. A propósito de monges e de mosteiros, citei Thomas Merton. Dispersiva, a conversa mudava de rumo quando ia tomando jeito.

Leitura recente, tínhamos na memória os bares, as ruas e as moradas da geografia juvenil de Henry Miller em Paris. Tentamos entrar por aí. Ele apertou os olhos no que me pareceu um movimento de ternura quando surgiu o nome de Anais Nin. Sem mágoa, mencionou seus anos de pobre diabo na cidade em que consumiu os melhores anos de sua juventude. Queixou-se com desdém de alguns editores. E da censura.

No meio da conversa, Fernando Sabino me perguntou em português se eu não via em Miller um ar de Mário de Andrade teuto-americano. Estranho que pareça, era verdade. Miller não perguntou que língua era a nossa. Devia ser espanhol ou italiano, disse, provocado. Fluente no francês, passou incontinente ao inglês. Nenhuma surpresa lhe causava o fato de ser conhecido no Brasil.

Glorioso, nome internacional, só deu mostra de satisfação quando lhe falamos de Remember to Remember. Acertamos no alvo. Mas não tinha interesse em continuar por esse caminho. Era melhor não falar de livros, seus ou alheios. A mesa vizinha foi ocupada por um casal recém-chegado. De uma beleza perturbadora, a moça podia tê-lo reconhecido. Miller, porém, não se tocou.

Daí a dois ou três dias, íamos pela rua e quem vemos? Henry Miller. Moídos de cansaço, tínhamos andado horas a fio. Ele nos reconheceu, espontâneo. Podia nos dar um conselho? Não visitássemos muitos museus. Era melhor andar pela rua. Nada como flâner, disse eu sem muita convicção. Contou que ia viajar de trem para o sul da França. Chapéu na cabeça, afastou-se, como um turista qualquer.

Anos depois, eu ia de carro com um amigo pela Califórnia, quando vi a placa de Big Sur. Posto em sossego no seu retiro, Henry Miller era agora um guru. Na primeira parada, procurei um cartão postal com a intenção de lhe escrever uma palavra. Pouco importava que não se lembrasse de mim. Acabei mandando o cartão para o Fernando Sabino, em Londres, com uma alusão ao nosso encontro de Paris.

Numa crônica que li outro dia, “Modéstia à parte”, Eric Nepomuceno refere-se às façanhas de um confrade que conhece na intimidade todos os poderosos do mundo. Há sujeitos que têm um especial prazer em despejar nomes de estrelas e vedetes que conhecem na intimidade. Quanto mais importantes, melhor. Como no saboroso exemplo de Erico Nepomuceno, boa parte dessa conversa é papo furado para impressionar os basbaques.

Em matéria de escritores, há quem diga que o melhor é manter distância. O tiete quase sempre se decepciona, quando vê em carne e osso o ídolo que idealizou por justa ou injusta razão. Há histórias clássicas de figurões estrangeiros que passaram pelo Brasil, aqui receberam todo tipo de homenagem e de volta aos penates nos relegaram ao silêncio ou nos esnobaram.

Podia citar dois exemplos que seriam típicos. Um antigo, Anatole France, que aqui veio no auge de seu prestígio. Tinha a admiração do que havia de melhor nas letras pátrias. A jovem geração de Carlos Drummond de Andrade rezava nos anos 20 pela sua cartilha. O outro, mais recente, para ficar no domínio francês, foi Jean-Paul Sartre. Voltou a Paris e nunca disse uma palavra sobre o oba-oba que aqui lhe fizemos. Nem “merci, messieurs”, como manda a “politesse française”.

Da minha parte, tenho conhecido, ou melhor, encontrado, alguns figurões aqui e lá fora, mais ou menos ao acaso. Quase sempre há pouco o que contar, como no caso de Henry Miller. Mas aconteceram também algumas situações curiosas, como se deu na entrevista coletiva de Françoise Sagan, em pleno fastígio. Ou de minha súbita amizade com Peter Sellers. Mas isto vai parecer mentira…

otto-lara-resende
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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