Um dia encontrei uma conhecida num hospital. Eu colhia dados para o que ia escrever e ela vestia um uniforme branco, toda elegante. Tinha que atender um cliente. Coisinha rápida. E me perguntou se eu não queria assistir. Vinha a calhar. Sentadinho no meu canto, acompanhei atento o exame. Além de um teste tipo Rorschach, o paciente tinha de responder a algumas perguntas.

Meio encolhido, magrinho, a cabeça quase raspada a zero, o rapaz não deu um fora. Eu já estava pronto para lhe dar nota dez, quando a psiquiatra (sim, era uma psiquiatra) ia assinar o laudo. E parou, caneta no ar. Enfiou os olhos no teto, baixou-os e me encarou, num esforço mental que lhe dava um ar vago, distante. Numa fração de minuto, voltou à realidade e me perguntou: que dia é hoje?

Essa, agora! Seis, ou sete? Talvez cinco. Podia também ser oito. Assim de chofre! Não uso relógio, nem vivo fixado no calendário. Além do mais, amnésia é contagiosa, todo mundo sabe. Era de manhã e eu ainda não tinha me situado nos fusos da minha rotina. Perplexa a psiquiatra, eu perplexo, ouvimos a voz do paciente. Nove, disse ele, firme. Nove, escreveu a doutora. Imagine o mesmo roteiro de pouco antes, com igual marcação. Olhos no teto, uma coçadinha no pescoço, olhos nos meus olhos.

De que mês? Má hora, péssima inspiração eu ter vindo bater ali naquele sufocante consultório. Hospício. Hospício público, crivado de indigentes. Tudo doido varrido. O mês? A moça, os olhos eram redondos e pretos, esperava a minha resposta. Mês, que mês? Setembro. De novo a voz seca do paciente. E antes que nos assaltasse a terceira dúvida, deu logo o ano: 1974. 9 de setembro de 1974, escreveu a doutora. Em seguida assinou o laudo. E saímos para uma caminhada e o bate-papo.

Um certo grau de alienação, me disse ela. Você viu a dificuldade que teve para se lembrar do nome do pai. Sinceramente, eu não tinha visto, nem ouvido. E fomos ao que me interessava. De volta, no carro, me lembrei do Guimarães Rosa: “Ninguém é doido. Ou, então, todos”. Claro, pensei também no dr. Simão Bacamarte, o alienista do Machado de Assis. Em seguida passei numa papelaria e comprei um calendário. Desse não me separo nunca mais, jurei. Eu, hein!

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