O sotaque tem diferenciações infinitesimais e cada pessoa pode ser conhecida pela voz. Quem diz isto é o sábio João Ribeiro, uma autoridade em matéria de língua nacional e de estudos linguísticos. Sabemos todos que um sotaque pode identificar a origem de quem fala. A maneira de falar por sua vez fala com eloquência de quem fala. A voz é de fato reveladora de uma personalidade.

Hoje se acredita que pela voz se pode fazer o diagnóstico de um paciente. Não apenas de males emocionais, ou psicológicos, porque até aí nem é preciso conhecimento especializado. A uma simples palavra, mesmo ao telefone, pode-se ter notícia do estado de espírito de quem fala. Se é, por exemplo, de depressão, ou de euforia. Mas até doenças orgânicas, psicossomáticas, se diagnosticam pela voz.

Deixando este plano pessoal e passando ao interesse nacional, seria o caso de perguntar qual é, ou deve ser, a fala padrão do brasileiro. Não temos até hoje um atlas linguístico do Brasil, mas é certo que temos numerosos falares, ou sotaques, se quiserem, dentro da mesma língua nacional. Mário de Andrade, que tocou em tudo, já em 1936 reunia em São Paulo um Congresso Nacional de Língua Cantada.

Em 1956, 20 anos depois, realizou-se na Bahia um encontro para estudar a língua falada no teatro. Tratava-se de indagar como conseguir a ilusão da realidade dentro da assimetria de pronúncias regionais, como disse Antônio Houaiss. Até onde é possível representar Shakespeare de modo que não se veja por trás de um Otelo um cearense, de uma Desdêmona uma gaúcha, de uma Julieta uma paulista.

A língua falada no teatro não será diferente da que se fala no cinema, no magistério, nos tribunais ou no parlamento. E também no rádio e na televisão, que no Brasil são particularmente tagarelas. Numerosos são os operários da palavra — locutores, apresentadores, cantores, atores, etc. Sem falar nos políticos, nos camelôs e nos mitingueiros. Os níveis linguísticos são vários. Sílvio Elia menciona a língua escrita, a língua falada, a língua literária, a língua padrão e a língua culta.

Felizmente somos uma nação cada vez mais conversada, mas ainda estamos longe do ideal da liberdade da fala. O povão em boa parte continua calado, o que o deixa passivo, à mercê de porta-vozes aventureiros. O alto-falante, como o rádio e a televisão, tem mão única. Fala, grita, mas não ouve. Nem responde. Aqui está mais uma razão para incentivar os inquéritos do tipo “fala o povo”, que buscam captar a fala do homem comum. O popular anônimo. O transeunte, homem da rua.

Até outro dia mesmo, era comum dizer que a nossa língua não se prestava ao diálogo recriado, mesmo literariamente na ficção. O público não aceitaria a fala brasileira coloquial no cinema, já que não está padronizado, ou sequer identificado. Hoje, o cinema (em recesso), o rádio e a televisão podem dizer, como Mário de Andrade, que falam brasileiro. Chega-se ao requinte de reproduzir um certo sotaque regional, como ainda agora foi o caso da novela Pedra sobre pedra, com a ensurdecedora gritaria da Renata Sorrah na pele da Pilar Batista.

Na série, todos vimos como é possível reproduzir um recente episódio da nossa vida política, sem lhe tirar a nota realística. Ninguém questionou ou pôs em dúvida a fala dos jovens que ressuscitaram no vídeo o bate-papo da moçada nos anos 60 e 70. Só isto é um evidente progresso, se compararmos com o tempo em que na tela, pequena ou grande, só o inglês legendado era aceitável e verossímil. A realidade foi recriada sem cair no ridículo, nem parecer falsa, ainda que Gilberto Braga não tenha sido, nem era o caso de ser, só historicamente documental.

Sendo perceptíveis as diferenças regionais da fala, qual foi a dominante em Anos rebeldes? Sempre se teve como dominante, em termos nacionais, a pronúncia carioca, que se baseia num sistema fonético bastante antigo. Assim tem sido de fato desde dom João VI, como assevera Serafim da Silva Neto. É crescente, porém, a presença nacional da fala paulista, com a predominância de um paulistês ítalo-caipira que nada tem a ver com o falar quatrocentão tradicional.

Digo isto e sou insuspeito, porque, mineiro, jamais pretenderia impor ao Brasil os “ss” sibilantes do mineirês, que pode estar de volta com a próxima ascensão de Itamar Franco. Há poucos dias, na sua volta à televisão, Leda Nagle foi dada como uma voz carioca. Como Itamar, Leda é de Juiz de Fora. Sua fala é mineira ou, no máximo, de carioca do brejo, que é o juiz-de-forense. Ou, horrível, juiz-forano. Por falar nisso, qual é o padrão da fala do Collor? Alagoano não é. Tampouco será brasiliense. Carioca? Fica a indagação, que a CPI não investigou…

Com tantos sotaques e tantos cacoetes regionais, é curioso que nada se tenha feito até hoje na linha dos congressos de São Paulo e da Bahia, em 1936 e em 1956, para servir aos que têm na palavra o seu instrumento profissional. Uma iniciativa assim caberia dentro do programa de comemoração dos 70 anos da Semana de Arte Moderna, a partir da qual por tantos meios e modos se procurou redescobrir o Brasil. Nada é mais típico da brasilidade, da nossa identidade, do que a língua que falamos. Há tempos li uma ridícula catilinária contra o Chico Anysio porque ele estaria empenhado em desmoralizar o Nordeste, a partir da caricatura que faz do nordestino. E da sua fala, claro.

Mas voltando ao princípio: há vozes simpáticas e antipáticas, sedativas e irritantes. Para meu gosto, há hoje na televisão um comercial com um sujeito que tem a voz mais intolerável do mundo. Esse cara pode anunciar o céu, que eu não aceito nem de graça. Há vozes fidedignas e vozes sem a menor credibilidade. Seria o caso de perguntar qual o sotaque que o Brasil hoje deseja — e em que acredita. Lembremo-nos de que a fala gaúcha do Getúlio dominou o Brasil por 20 anos. Era a Voz do Brasil. E quem sabe o Brizola em São Paulo esbarra exatamente nesse eco do Getúlio?

otto-lara-resende
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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