26 jul 1992

O poder literário do suplemento dominical

Minha experiência de jornal era modesta quando comecei a escrever sobre temas literários. Nossa geração encontrou, postos à mesa, enfáticos, retóricos, os grandes temas universais, a que à guerra, iniciada em 1939, dava uma ressonância dramática. Não havia incompatibilidade entre o jornal e as letras, Muito mais do que hoje, o caminho do escritor passava obrigatoriamente pela imprensa.

Não me animo a procurar os artigos de jornal que andei publicando naquela época remota. Ainda que os procurasse, é bem possível, felizmente, que não os achasse.

Animais essencialmente literários, encharcados de literatura, tínhamos os olhos postos no Rio e em São Paulo. Nosso interesse ia até outras praças – Porto Alegre, Recife, Bahia, na busca de intercâmbio com os nossos iguais.

O Brasil era, sim, um arquipélago cultural, segundo o diagnóstico de Viana Moog, um gaúcho que, como Raul Bopp, tinha tido o seu exílio na Amazônia. Longe, porém, de se ignorar, as várias ilhas procuravam, ansiosas, ter notícias umas das outras. As possibilidades de comunicação eram incomparavelmente menores do que as de hoje, mas nem por isso deixávamos de entrar em contato com os nossos irmãos da opa literária.

Deve ter sido em função dos artigos que andei escrevendo que fui parar na direção do Suplemento Literário da Folha de Minas. Dirigir o suplemento na prática significava editar os cadernos dominicais, ou seja, o feminino, o agrícola e o infantil, além, naturalmente, do literário. Minha passagem pelo suplemento da Folha de Minas não alcançou um registro marcante.

Se tive um mérito, foi contribuir para que o poeta Emílio Moura se animasse a assinar o rodapé semanal de crítica literária. Um suplemento que se prezasse não podia deixar de ter um crítico – e de preferência um crítico de rodapé. No Rio, Álvaro Lins se encontrava no auge de seu prestígio e de sua autoridade. Vindo do Recife, foi-lhe dado o rodapé do Correio da Manhã, que fora antes de Humberto de Campos.

Além da crítica oficial, Álvaro Lins editava o suplemento do Correio, o que significava deter uma parcela ponderável do nem sempre difuso “poder literário”. Sua palavra podia consagrar um jovem estreante, como podia comprometer a reputação de um valor estabelecido. Na linha de seu predecessor José Veríssimo, tinha autoridade até para expulsar da literatura brasileira quem bem entendesse.

Foi o que fez, por exemplo, com Júlio Ribeiro, autor do romance realista A carne, sem que se desse ao trabalho de dizer as razões ou alinhar os fundamentos de seu severo parecer.

Alguns escritores contemporâneos, como Afrânio Peixoto, eram apeados do trono acadêmico e metidos a ridículo. Afrânio, por exemplo, durante aqueles anos não passava de autor de uma definição da literatura como “o sorriso da sociedade”.

A simples enunciação do seu nome se tornou motivo de chacota. Quem era Afrânio Peixoto? Era, como escreveu um dos nossos, um homem que fazia rir toda a sociedade literária. E ponto final.

Apesar da guerra e do confronto das ideologias, era ainda pouco visível aos meus olhos o que depois veio a se chamar de patrulhamento ideológico. O próprio Álvaro Lins tinha sido integralista em Pernambuco, mas isto não o incompatibilizava com a opinião democrática que em seguida veio a adotar.

Um dos meus primeiros artigos versava sobre as “panelinhas literárias”. Bastante provinciana, minha ótica de recém-chegado se alimentava em registros literários de fora e em particular no Anuário Brasileiro de Literatura. Há sempre uns sujeitos que se sentem vítimas de injustiça por não terem sido convidados. Apesar dessa ideia paranoide de um inexistente convite, a verdade é que no meu caso eu não tinha motivo de queixa.

Não demorou muito e tivemos todos acolhida na imprensa do Rio e de São Paulo, através de um intercâmbio que logo identificou vários grupos intelectuais (quem sabe as famosas “panelinhas”?).

Fecundo articulista, sempre armado com um original para alguma eventualidade, eu não me pretendia titular de uma cátedra. Mas nem por isso deixava de botar banca de crítico. Dizia com uma penada o que prestava e o que não prestava.

Em 1941, tinha eu 19 anos, quando Álvaro Lins estimulou o que lhe pareceu minha vocação de crítico. Foi difícil não me afivelar a máscara, quando li palavras como estas: “Se fosse maior o número dos que têm a sua compreensão e a sua lucidez, então a crítica teria um grande papel no Brasil”. O elogio era despropositado, fruto de uma generosidade que atirava no escuro.

Eu, felizmente, tinha noção do vasto universo das minhas ignorâncias e trazia, ao mesmo tempo, uma ambição que não se esgotava na crítica. Com a certeza de que me faltava a graça da poesia, escrevia também versos que chamava de necessários. Lúcio Cardoso chegou a fazer a capa de um possível caderno de Poemas necessários, que sensatamente nunca editei.

Meu alvo era a ficção. Parti logo para o romance (inédito). E espalhei por aí alguns contos de uma sombria linha introspectiva, como, O pai, que publiquei no próprio suplemento da Folha de Minas.

Um pequeno incidente me pôs fora do jornal e da chefia dos suplementos dominicais. Fiquei livre de ter de fechar na oficina com antecedência os vários cadernos. A oficina era num prédio na av. Amazonas e até que tinha graça aquela tarde passada com os gráficos, para evitar um “joelho” na paginação, ou cortar umas poucas linhas aqui e juntar outras tantas ali adiante. Com o meu entusiástico apoio, assumiu o meu lugar o poeta (e crítico!) Paulo Mendes Campos.

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As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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