Levei um susto quando li que João Gilberto ia completar sessenta anos. Ninguém escapa dessa vertigem do tempo. Ou dessa cilada. E é de repente. Os antigos diziam que a velhice começava aos sessenta. E lá dizia o latim: senectus morbus. Velhice é doença. Até que enfim os antigos já não têm razão. Brincando, se diz que há três sexos. Ou se dizia, porque hoje o terceiro é outro. Antes eram o sexo masculino, o sexo feminino e o sexagenário. 

Como já se passaram vários anos da bossa-nova, está na hora de olhar para trás. Essa viagem nostálgica está no livro de Ruy Castro, Chega de saudade. Como a terra aos olhos de Gagarin, o passado é azul. O passado de que a gente se lembra é ainda mais azul. Dói deliciosamente. Foi assim, cheio de rumores que estavam caladinhos, que atravessei de um fôlego o livro de Ruy Castro. 

Muita gente daquele tempo, hoje azul, está citada. Está lá o poeta Schmidt, por exemplo. Fazia comparações entre a bossa-nova e um galo branco de louça que tinha na sala. Que isto? Eu ouvi a Nara Leão, mocinha, no apartamento do Schmidt, já na rua Paula Freitas. Mas espere aí, Ruy. O poeta tinha um lindo galo branco de verdade, na varanda, engaiolado. Esse galo foi até título de um livro, de 1948: O galo branco. Anos e anos lá estava firme, cantando garboso para a aurora. 

Grande noite, porém, foi com o Manuel Bandeira. Musical, o poeta tinha o convívio do Villa-Lobos, do Mignone, do Ovalle. E do Mário de Andrade, professor do Conservatório paulista. Ficou encantado com o João Gilberto. Pois claro: o João estava lá e mostrou a sua recente batida, que ia fazer bater o coração do mundo. Era na rua Bolívar. Ano? 1960, creio. Rindo à toa, Manuel pôs para fora o piano da sua dentuça. E também tocou violão. 

Doente profissional, tuberculoso, dormia cedo, pontual. Pois João Gilberto o hipnotizou até as duas da manhã. Só então fui levá-lo ao edifício São Miguel, avenida Beira-Mar. Estava comigo o Armando Nogueira. O assunto obsessivo era o violão do João Gilberto. O Manuel impressionadíssimo com aquele rapaz. Não era um joão-ninguém. Era alguém. Um gênio, de ouvido absoluto. Um fio de voz, que até os anjos ouvem em silêncio.

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