Periódico
Folha de S.Paulo

Publicada no livro Bom dia para nascer, Companhia da Letras, 2011.

Quem contava divinamente bem a história era o Marco Aurélio Matos. Com o seu talento histriônico, tudo com ele tinha graça. Até um discurso do Getúlio. Ou sua paródia. A imitação era perfeita. Batia as palatais no céu da boca, à maneira gaúcha. Tenho até hoje nas oiças uns trechos getulianos. Vou andando pela rua e sorrio, meio doidinho. Do nosso tempo de estudantes em Minas, me vem a voz do Getúlio, apud Marco Aurélio. O Estado Novo é a pesquisa social de novas formas, etc.

Depois a imitação foi sendo enfeitada com recheios que misturavam a oratória oficial com a pilhéria. Dessa boa safra era a galinha ao molho pardo à Getúlio Vargas. Pega-se a galinha em pleno voo. A galinha do vizinho, bem entendido. E prosseguia a receita, com ingredientes políticos e temperos de um irresistível humor. A gente não se cansava de ver e ouvir o show sempre renovado do Marco Aurélio.

Mas a história a que me referi aí em cima é aquela. O sujeito foi encontrado no deserto, sangrando, com um punhal cravado no peito. Não está doendo?, pergunta a irmã Paula. Só dói quando eu rio. A resposta não podia ser mais hilária, como se diz hoje. E se espalhou por aí. Difícil saber até onde o Marco Aurélio inventou essas histórias. E até onde lhes deu uma nova e vistosa roupagem. Conhecia a fundo Shakespeare, Swift, Shaw.

Estou pensando nisso a propósito do modo brasileiro de rir da própria desgraça. A gente sofre, mas a gente goza. Contraditórios, são sentimentos todavia afins. O antigo jeito bonachão do Getúlio não combina com o atual estilo collorido. Mais para o arrogante e colérico. Ainda agora, sitiado, tão só que até dá pena, está todo penteadinho. E o nariz empinado. Nem por isto, ou melhor, até por isto provoca o riso e a galhofa. No Brasil desgrenhado, é a nossa catarse.

Aí, no mesmo dia, em dois jornais, um carioca e o outro paulista, aparece a mesma sentença. Humor e amor combinam bem, escreve o Marçal Versiani. O humor é uma forma de amor!, exclama o José Simão. Aqui é que a porca torce o rabo. Me lembro de um bate-papo a respeito. Onde? Na Fundação Getúlio Vargas. A certa altura, entrou essa do humor político. O mestre de psicologia que dava as cartas partiu pra briga. Amor coisa nenhuma. Humor é ódio. E todo humorista é no fundo mal-humorado.

otto-lara-resende
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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