19 jul 1992

Cachaça ou bico, jornal ainda não era profissão

No trabalho arqueológico a que me dediquei, para buscar no fundo da memória o que era o jornalismo de ontem, a primeira notícia que tenho da existência da imprensa me vem pelo olfato e pelo ouvido. Primeiro foi o cheiro de tinta do jornal fresquinho saído da máquina. De São João del Rei foi comigo para Belo Horizonte. E de Belo Horizonte veio comigo para o Rio.

Não sei se a tinta hoje tem outra fórmula química. Ou quem sabe já nem exista tinta. Mas trago comigo, na minha pituitária, esse cheiro inseparável da atmosfera do jornal. Seria digamos a nossa madeleine, se tivéssemos que encontrar no passado profissional um choque proustiano, capaz de nos devolver por um instante a memória do tempo perdido.

Depois do olfato, o ouvido. De fato, o jornal foi sempre também um certo ruído de máquina. O matraquear do Diário do Comércio era, em São João del Rei daquele tempo, um incontestável sinal de progresso. Não tenho agora como saber se O Diário, que funcionava no andar térreo da Associação Comercial, dispunha de pelo menos uma linotipo. A memória me diz que sim, que tinha.

Esse remoto jornal mineiro, que saía com orgulho à rua todo dia, muito antes das modernas agências de notícias, me deixou nas oiças o barulhinho característico da linotipo. Não tinha, é verdade, o barulhento solavanco da rotativa, porque isto seria pedir demais. Era ainda o reino da máquina plana. Na sede do Correio, o outro jornal perto da matriz, a composição ainda se fazia com os tipos de caixa, catados um a um pela mão hábil do tipógrafo.

Foi essa doce música mecânica que Carlos Drummond de Andrade evocou no “Poema de Jornal”. Reencontrei-a em Belo Horizonte, em 1938, assim que entrei na redação de O Diário. O jornal estava instalado numa sede própria, o que era raríssimo, mesmo no Rio e em São Paulo. Só um milagre seria capaz de dar sede com oficina moderna a um jornal de propriedade de uma sociedade anônima cuja razão social era “Boa Imprensa S.A.”.

O Diário ficava na rua Goitacazes, a um passo da rua da Bahia, onde veio depois se instalar a Folha de Minas, transferida da rua Rio de Janeiro, perto da praça Sete. A dois passos dali, estavam (e estão, presumo) o Estado de Minas e o Diário da Tarde, o matutino e o vespertino que no meu tempo já pertenciam aos Diários Associados, cadeia de Assis Chateaubriand.

Como a Folha de Minas, o Estado tinha começado anos antes com um ímpeto libertário de oposição ao governo. Entre os fundadores e diretores, estavam Milton Campos e Pedro Aleixo. A Folha de Minas, por sua vez, teve origem no patrocínio da candidatura de Virgílio de Melo Franco, que não vingou. Fez oposição ao governo estadual por uns tempos, com Afonso Arinos, mas depois passou ao controle acionário do Palácio da Liberdade. A imprensa era então inseparável da política.

Todos situados na vizinhança do antigo Teatro Municipal, a um passo do que tinha sido o centro nervoso de Belo Horizonte, o chamado Bar do Ponto, os jornais conviviam em boa paz. Em boa camaradagem viviam também os jornalistas das várias redações, a despeito da diversidade de opiniões políticas e até de credos religiosos. Apesar da passagem de Carlos Drummond de Andrade e de Rubem Braga pelos Diários Associados, eram estes os menos permeáveis aos ventos renovadores que tinham começado a soprar na remota Semana de 1922.

Em plenos anos 40, alimentava-se de parte a parte a controvérsia entre “passadistas” e “modernistas”, ou “futuristas”, como se o dizia com menoscabo. O nosso bom Monzeca chegava a publicar na edição dominical do Estado de Minas, um ao lado do outro, um poema de verdade, de cunho parnasiano, e um poema modernista, que agredia todos os cânones da arte poética tradicional.

A rixa entre os jovens modernos e os velhos passadistas, por sinal ainda na flor da idade, provocou algumas escaramuças tardias. Mas entre mortos e feridos, todos nos salvamos. Pode ser que haja aqui um viés pessoal, mas o fato é que naquele tempo o jornal estava ainda muito próximo da vida literária e com ela se confundia. A vocação para as letras passava fatalmente pelo teste do jornal —  até porque ninguém era doido a ponto de supor que se pudesse viver de escrever (verso ou prosa pouco importa).

O jornal é uma cachaça, diziam os mais velhos, já entregues ao “vício”. Também se dizia que o jornal leva a tudo, contanto que dele se saia. É uma frase francesa, o que sugere que o nosso processo repetiu o que se passou na França. De resto, a influência dominante era a francesa. O gigante americano começava a despontar com a guerra e em pouco importaríamos a técnica dos Estados Unidos. Técnica também na maneira de escrever a reportagem, de paginar, etc. Em suma, de fazer jornal. A queda da França, derrotada pelo nazismo, contribuiu para o seu ocaso e abriu espaço à presença americana.

Uma vez jornalista, sempre jornalista —  a “cachaça” começava a se profissionalizar, a criar dependência, por mais distante que estivesse do que veio a ser depois, nos anos 50 e seguintes. O jornal daquele tempo ainda era um “bico” —  uma pausa, uma passagem, uma espécie de aprendizado para seguir em frente. No meu caso, como no de tantos companheiros de geração, o alvo era a literatura. Alvo ou paixão, já que não se podia pensar em termos profissionais. Aos 17 anos, comecei a escrever assinado. Um perfeito palpitólogo, cheio de certezas e presunção.

otto-lara-resende
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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