Um homem chega em casa depois de um dia de trabalho, depois de ter sofrido os castigos e as irrisões do mundo, as insolências do chefe, a grosseria dos orgulhosos, a cretinice burocrática; depois de ter sido preterido a favor de outras pessoas sem mérito, o homem chega em casa gemendo e suando, vítima ainda de outras afrontas que Shakespeare omitiu no seu grande solilóquio, tais como o calor de rachar passarinho, o barulho, os preços pela hora da morte, a roubalheira geral, a demagogia estúpida, todos esses fatores que fazem o chefe de família arrancar o casaco, como quem se liberta de uma grilheta, atirar-se a uma poltrona e suspirar:
— Mas que dia horrível eu passei, minha filha! Puxa, é de encher!
Deixemos esse herói moderno aí sentado, resfolgando de tédio, fadiga e indignação. E perguntemos que programa poderá seduzi-lo para depois do jantar? Depende, depende das disposições particulares de cada um. Há homens que gostam de ficar lendo jornal depois do jantar; outros que refazem o equilíbrio interior, perdido na luta diária, jogando biriba; há quem goste de ler, de escrever cartas, de fazer contas ou planos para o futuro; há quem não ache coisa melhor do que uma conversa sem propósito, há sujeitos estranhos que não dispensam um pulo à casa da sogra; há quem descanse zanzando pela casa em uma gratuidade elementar, há quem ligue o aparelho de televisão ou o rádio, há quem aprecie dar uma volta de automóvel ou a pé; há mesmo certos tipos redundantes que, antes de dormir, gostam é de tirar uma soneca. Enfim, variados são os expedientes masculinos para as poucas horas de ócio. Qualquer que seja esse expediente, entretanto, a verdade é que a mulher do homem que chega do trabalho, muito antes de ele abrir a porta, muito antes mesmo do dia em que subiram ao altar, antes até de conhecê-lo, já tinha uma ideia determinada e irredutível a respeito de como empregar essas horas vagas: ir ao cinema. Ela se levantou de manhã, foi à feira, levou as crianças à escola, providenciou as coisas domésticas, tomou banho, pintou-se, preparou o jantar, beijou carinhosamente o marido ao abrir-lhe a porta, para se fazer merecedora de um prêmio: ir ao cinema.
O mundo é de fato grande e estranho, o homem é um ser diverso e surpreendente, mas uma coisa além da morte é absolutamente certa: todas as mulheres do mundo querem ir ao cinema depois do jantar. Independente da posição social ou financeira do marido, da personalidade deste, do seu biotipo, da sua filosofia, de suas responsabilidades, de sua raça, a mulher invariavelmente só admite uma coisa depois do jantar: ir ao cinema. Mulher de integrante das forças armadas, quer ir ao cinema; mulher de deputado, quer ir ao cinema; mulher de funcionário, quer ir ao cinema; mulher de provedor da Santa Casa, quer ir ao cinema; mulher de poeta, de corretor de seguros, mulher de honestos e desonestos, mulher que frequenta consultório de analista ou não frequenta, mulher de caráter ou mulher vulgar, mulher de amor assalariado ou mulher de amor a título gracioso, mulher alegre ou triste, mulher que sofre do fígado e mulher que não sofre, mulher viril ou feminina, mulher inteligente ou burra que nem uma porta, todas elas, sem exceção, sem a exceção de que eu precisava para confirmar esta regra inexorável, todas elas têm um fervor na vida, uma tara inextirpável: ir ao cinema.
E que pensa sobre isso o marido, aquele homem que deixamos derreado sobre a poltrona? Ah, depois de todo um dia de canseiras e aborrecimentos, caso se trate de uma criatura normal, ainda não pervertida pela cinemania da namorada de antigamente, da noiva, da mulher, ele só poderá pensar uma coisa: não ir ao cinema.
Não digo que uma vez ou outra ele não deseje também ver um filme. Pois se é exatamente aí que está a fantástica diferença: os homens honrados gostam de filmes; as mulheres vão ao cinema. Gostar de filmes é igual a gostar de literatura, de música, de pintura, de comer bem; ir ao cinema, gostar de cinema, é uma deformação da personalidade, um vício que não seria grave e desastroso para a humanidade moderna se as mulheres não se sentissem irremediavelmente traídas, ofendidas e humilhadas quando os maridos não querem ir ao cinema. O pior é que elas dizem para os pobres maridos que ir ao cinema não é nenhum sacrifício, que nada demais estão a exigir, pois, na escureza de seu fanatismo, jamais poderão entender que uma pessoa seja tão monstruosa que não goste de cinema. Acham é que é má-vontade e desprezo do marido, amuam-se amargamente, sofrem de cortar o coração, sentem-se desamadas, ultrajadas, iludidas no seu mais animado ideal.
Já vi mulheres suportando anos a fio, com uma paciência e uma dignidade miraculosas, os mais desagradáveis maridos; seres essencialmente terrestres e adaptáveis, elas são capazes de viver relativamente em paz com canalhas, bêbados repelentes, vagabundos, neuróticos perigosos, sádicos e até com os mulherengos mais vulgares. Mas juro que ainda não vi um lar perfeito onde o marido ainda tenha o topete de rebelar-se contra esta seita feminina contemporânea, o cinema. Lar perfeito é só aquele no qual o marido abre mão de todas as suas aspirações a fim de acompanhar a mulher ao cinema. No primeiro dia em que o marido chega em casa de madrugada, pode haver choro, mas a coisa depressa se acomoda; no entanto, desde que o marido se recuse pela primeira vez a ir a um cinema, ele desperta na companheira um ressentimento incurável. Pois ela pertence a uma geração que se casa para ir ao cinema. Pode soar como exagero, mas estou convencido disso, depois de acurada observação: as mulheres de hoje em dia são atraídas pelo matrimônio por motivos muito diversos dos de antigamente, tradicionais. Casamento é agora a esperança de conquistar o direito inalienável de ir ao cinema.
Vivemos um tempo de extraordinários e numerosos desajustamentos conjugais, um tempo fecundo em brigas infelizes, separações e desquites. Desavisados andam tantos estudiosos quando investigam as causas profundas dessa instabilidade social, jamais vista no passado. Pois a causa é superficial e sensível como a própria pele que nos esconde o corpo: é a loucura que as mulheres têm por cinema. O resto é pretexto e equívoco.