Costuma dizer que a criatura mais antiga que ele conhece sou eu. De fato, no entanto, ainda não tinha barba, e nem tomara o mau caminho do jornalismo, quando, ao esperar algum companheiro na Folha de Minas, de Belo Horizonte, frequentemente ouvia Newton Prates, o redator-chefe, corrigir uma reportagem mal feita e resmungar: “Isso era assunto para o Braga”!

A rápida passagem de Rubem Braga por Belo Horizonte deixou saudade nas redações e o sentimento de uma perda profissional irreparável. Ainda hoje, num café qualquer da rua da Bahia, pode-se ouvir um dromedário (velho jornalista) a contar para os olhos arregalados de um foca (principiante) como o Braga se revelou da noite para o dia um repórter fora do comum, estreando na imprensa com uma história sobre um desinteressante concurso de cães; o novato, ao qual se confiara a cobertura de um assunto tão sem graça, produziu uma página do mais fino humor, aparecendo desde então o inigualável cronista.

Só fui conhecê-lo quando voltou da F.E.B., se não me engano ainda fardado de capitão, num bar da avenida Atlântica. Moramos há algum tempo numa casa da rua Júlio de Castilhos, quando formávamos os dois num bando de homens e mulheres entre 20 e 30 anos, uns casados, outros solteiros. Éramos uma espécie de juventude transviada, um pouco mais vivida que a de hoje e certamente de padrões muito mais suaves. Em vez da lambreta ostensiva, usávamos a insinuação da bicicleta; o chope farto das noites quentes dava sono; no lugar da “curra” brutal, a turma preferia o método romântico das compridas conversinhas ao pé do ouvido; de vez em quando um rififi, é verdade, uma aventura que se dramatizava, uma festa fechada a pescoções líricos. Mas a Justiça não teve de preocupar-se conosco.

O Braga era cronista famoso; eu insistia em escrever para arranjar algum dinheirinho. Ele, por ganhar melhor, eu, por não ser muito solicitado, tínhamos tempo de sobra para bate-papos vagarentos, um na rede, outro estirado no sofá, enquanto o menino do armazém ia abastecendo-nos, de hora em hora, com um pedaço de queijo e um litro de vinho Gatão.

Aprendi bastante com ele por essa época, a verdade obrigando-me a dizer que, acima da literatura e do mundo, minhas lições melhores foram sobre a paixão ou a frivolidade das mulheres, a raridade de um cotovelo bonito, os mecanismos inibitórios da alma feminina, as semáforas quase imperceptíveis do desejo... Um curso oportuno para os meus 20 e poucos anos. Aos que esperassem do Braga outros temas, ditos mais elevados, lembro Ortega y Gasset: é curioso, escreveu filósofo, que somente os incapazes de fazer obra grande creem que o certo é levar a sério a ciência, a arte ou a política, e desdenhar os amores como matéria frívola.

Nessa casa de Copacabana, brigamos uma vez por causa de uma acácia espanhola, do jardim do vizinho, que amanhecera florida. Tinha eu visto as flores primeiro e reservei logo os direitos sobre o assunto; mas o Braga não queria também perdê-los. Para a pura perda dos leitores, valeu-me o direito, tocando a mim literatizar em crônica chinfrim o espetáculo a que ele teria dado uma expressão certa e comovente.

Por um anúncio de jornal, contratamos um dia um professor de inglês; surgiu-nos um homem de meia-idade, muito limpo em suas roupas e suas maneiras, mas de cérebro e entendimento curtos. Baste falar que o vistoso cidadão britânico ignorava a existência de Bernard Shaw, e quase morreu de rir, desconfiadíssimo, quando traduziu, a meu pedido, um poema de Ezra Pound, no qual o poeta se dizia uma árvore no meio do bosque. Se dormisse muito tarde, o Braga me pedia para dizer ao mestre que fora à cidade. Aquele inglês, entretanto, não era de sutilezas; empurrava-me gentil mas com certo vigor, abria o caminho que eu lhe barrava, subia uns três degraus da escada e comandava imperioso lá pra cima: “Desça, mr. Braga, preguiçazinha, mim não acreditar em mentira de vagabundo”. Rubem descia a esfregar os olhos, com o ar maroto, e sonolentamente a traduzir os verbos irregulares. Tivemos de mandar o professor embora.

São 13 anos de convivência com esse capixaba. Há muito que gosto de provocá-lo, sem que ele o perceba, fingindo tomar partido, a sério, a respeito do território litigioso entre Minas e o Espírito Santo. Conheço-o bastante bem, admiro a limpidez de seu raciocínio, de seu estilo e de sua honestidade.

José Lins do Rego uma vez pegou-me pelo braço e me falou, com razão: “O velho Braga diz que não lê quase nada mas esse homem sabe tudo”!

Vinicius de Moraes o retratou num poema, quando escreveu:

Terno em seus olhos de pescador de fundo 
Feroz em seu focinho de lobo solitário 
Delicado em suas mãos e no seu modo de 
                                         [falar ao telefone

Manuel Bandeira falou na “inefável poesia que é só do Braga” e na poesia barata e vulgarmente sentimental dos outros cronistas.

E o Braga, numa noite há muitos anos, dentro de um táxi, repetia-me, com a voz mais embrulhada que nunca: “Não é nada disso... Não é nada disso... O que eu gostaria mesmo era de viver no mato, pescando, caçando, bebendo cachaça e tomando banho de rio”.

Essas quatro observações, a do romancista e a do próprio Braga, as desses dois poetas ajudam a entender o homem que hoje deixou esta página. Entro aqui absolutamente esclarecido sobre as minhas limitações. Certo de que, nos meus dias de sorte, quando pelo menos tiver achado um assunto bom, os leitores irão resmungar com saudade: “Isso era assunto para o Braga”! 

paulo-mendes-campos
As crônicas aqui reproduzidas podem veicular representações negativas e estereótipos da época em que foram escritas. Acreditamos, no entanto, na importância de publicá-las: por retratarem o comportamento e os costumes de outro tempo, contribuem para o relevante debate em torno de inclusão social e diversidade.
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