Fonte: Caderno B, Jornal do Brasil, de 17/03/1972.

Num aviãozinho que parece de brinquedo, um Cessna, sobrevoamos a paisagem ensolarada, lambida de mar e de lagoas. Como é bonito o Rio de Janeiro... Sobrevoamos montanhas de um verde áspero, que num tumulto de cactos e coqueiros despencam nas enseadas azuladas. Ilhas altas e ásperas. Ermas angras, balouçantes.

Do aeroporto Santos Dumont ao paraíso são 50 minutos. O aviãozinho já sacoleja numa pista de capim e areia, que vem de uma enseada serena e rasga uma confusa mistura de pitangueiras e matagal sem nome. É aqui. Ao pé da castanheira grande, cuja copa se estreita em andares ou plataformas, lembrando um pagode chinês, a hélice faz puf! — e saltamos em terra firme. 

Um milionário doido, português enriquecido em São Paulo, fez aqui o impossível. Não há estradas, há trilhas que sobem as montanhas, escorregadias ao menor sinal de chuva, distando a leste cinco horas a pé de Ubatuba e a oeste cinco horas a pé de Paraty. Pois o tal português construiu aqui uma casa colonial de dois andares, com oito quartos, e no grande salão de refeições instalou móveis de jacarandá.

O paraíso é este mar virtualmente intocado que se abre para os grandes abismos. Este desdobrar-se de areias duras e lisas por quase 20 quilômetros, estando cada praia cingida pela floresta monumental, mas não assustadora, lembrando a floresta amazônica em miniatura.

A praia principal chama-se Laranjeiras. Há pedras amontoadas em suas extremidades e há um rio que deságua no mar. Há uma cachoeira cujas águas impetuosas se esparramam subitamente mansas, cristalinas, sobre um leito escuro de areia e musgo, formando um igarapé.

No terceiro dia, dei por mim falando em voz alta comigo mesmo. No meio dos bois magros que comem as colinas hirsutas, no meio das galinhas alvoroçadas que explicam aos seus pintainhos a arte de arrancar a minhoca, matando a tapas os mosquitos minúsculos, mas ferozes, evitando esmagar formigas, dei por mim falando em voz alta comigo mesmo, escutando a minha voz em sua limpidez, isenta de angústia, na solidão mais sumarenta que se possa imaginar. Ali onde o rio se insere sob as ondas do mar, a água é mansa, tépida, transparente, uma piscina imperturbável.

Ainda não era, contudo, a experiência completa. Faltava alguma coisa, um incidente ou sinal que nos mostrasse estarmos finalmente livres (embora por pouco tempo) das servidões próprias dos metropolitanos.

Éramos nove: um geólogo com sua mulher e três filhos, um inglês com um casal de filhos e eu. Atacou-nos já no primeiro dia uma fome desesperadora, e nunca se viu nove pessoas magrelas comerem tanto feijão e tanto arroz e tanta banana e tanta goiabada e tanto biscoito e tanto pão doce, e no dia seguinte acordamos com mais fome ainda. E logo se espalharam todos, cada qual adivinhando o seu lugar na areia, no mar e no rio. Nove solidões que se reconhecem, nove encontros do eu com o mim, e aquele afeiçoar-se quase erótico ao silêncio das folhas em alvoroço e à quietude dos pássaros inquietos.

Então, fomos na direção da cachoeira, os pés atolados numa lama verde, misturada com bosta de boi. O inglês alto, magro, taciturno, e seus dois filhos loirinhos, e mais um irmão meu que nesse dia estava lá, de modo que nessa ocasião éramos dez e não nove. Fomos andando entre pedras e mato bravo, entre camaleões e insetos. Súbito, à nossa frente, a menos de cinco passos de onde estávamos, surgiu duma moita do lado direito uma cobra. Era uma cobra grande, gorda, de pele azul-escuro, e se arrastava humilde, a cabeça rente ao chão, da direita para a esquerda. Sua língua fina dançava fora da boca.

Tenho pavor a cobras; há anos que elas me espreitam e ameaçam lá dentro de mim, lá onde estão os meus medos mais pueris e inconfessáveis. E naquela hora éramos responsáveis pelas crianças, os filhos do inglês, o que deveria aumentar a nossa inquietação: o medo viria acrescido de responsabilidade.

Mas não, não houve nada. A grande e alegre cobra atravessou humildemente a trilha e se embrenhou na moita, à nossa esquerda. Ninguém se assustou. Sentimos que a cobra estava em seu lugar, em sua casa, e que a natureza bravia era um bom lugar para nós estarmos também. Daquela cobra se desprendia uma gentileza de gato, assim como das grandes árvores vinha a música da felicidade que empolga espírito e corpo. As crianças adoraram a cobra, e nós adultos também.

jose-carlos-oliveira