O pintor Reis Júnior, que é também historiador de arte e domina a expressão literária, acaba de escrever um livro excelente sobre Oswaldo Goeldi, seu companheiro de cerca de 40 anos no Rio de Janeiro. Livro que conta a vida do mestre da gravura brasileira e analisa a sua obra à luz das origens étnicas, do temperamento e das vivências pessoais do artista, poderosamente original e solitário. Estou prevendo a maior receptividade para essa biografia crítica, feita com probidade carinhosa. E não vou fechar o registro sem anotar neste bate-papo da crônica uma reminiscência infantil de Goeldi, recolhida pelo Reis.

Oswaldo era carioca do Cosme Velho (signo do Escorpião), filho de um naturalista suíço que se casou no Brasil e foi reorganizar em Belém o Museu Paraense, hoje com o seu nome ilustre. Finda a missão, o professor Emílio Goeldi regressou à Suíça, com a família. Mas sua casa em Berna ficou sendo um pouco brasileira, não só porque dona Adelina, sua esposa, era de Ubatuba, mas também e principalmente porque Emílio Goeldi amava as nossas coisas, e os meninos tinham gratas lembranças do Rio e da Amazônia. Um dia, amigos brasileiros mandaram para os Goeldi um pacote de feijão preto, recebido com alvoroço na casa suíça. Feijão do Brasil: que delícia! Reúne-se a família para assistir, encantada, à abertura do colis. E eis que das profundezas do feijão preto emerge, atarantada, uma baratinha. Grito geral de alegria, as crianças pulando em torno da viajante: “Uma baratinha do Brasil”.

Outra barata, mais tarde, faria companhia a Oswaldo Goeldi, conta Reis Júnior. Companhia interesseira, mas em todo caso presença viva na noite do Leblon, quando Goeldi, sexagenário, doente, proibido de fumar e de beber, “em estado de verdadeira ascese artística”, varava noites experimentando novas técnicas de xilogravura, para resolver o eterno problema da cor. A barata aparecia no pequeno ateliê, à procura de alimento, um resto de cola, talvez, e ficava zanzando entre as madeiras. Tinha uma perninha de menos, e por isto era fácil identificá-la. Goeldi acompanhava com ternura as suas evoluções: “esse misero ser fornecia-lhe pausas salutares à tensão espiritual” — comenta o pintor. 

A infância vivida entre bichos, no Pará, e o exemplo do pai naturalista o predispunham a essa simpatia por tudo que é vivo, inclusive pelo pequenininho, que vulgarmente se tem como repugnante. Os bêbedos, os vagabundos rotos do dia e da noite eram alvo dessa mesma atenção compreensiva que se desdobrava em interesse estético, pois Goeldi era um olhar agudo, apreensor e transfigurador das coisas pobres, miseráveis, anônimas, mas tão ricas de forma e expressão como quaisquer outras, tidas como nobres e privilegiadas pela simpatia humana. Entre duas baratas, toda uma vida de apaixonada criação se cumpriu, em dolorido quase-silêncio. Sentimos que o Brasil ficou tendo alguma a mais de que se orgulhar, no desenho e na gravura de Goeldi.

carlos-drummond-de-andrade
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