Periódico
Manchete

Publicada, posteriormente, no livro Homenzinho na ventania, de 1962.

Meu compadre Fonseca é um homem tão organizado que nasceu num dia de Natal. Durante dez anos, enquanto Fonseca e a comadre moraram no Rio, passei a noite de 24 de dezembro na casa deles. A festa, farta e alegre, tinha 12 horas de duração, de 21h às 9h. Havia comensais fulltime, como eu, e outros que vinham antes, durante ou depois da meia-noite. Mas todos assinavam o ponto. E como tem amigos o casal! Era o tempo todo um rodízio numeroso de damas e cavalheiros, o uísque e o champanha dando pelas canelas, tudo isso sem os excessos pagãos da dolce vita, mas temperado familiarmente pela sábia serenidade do compadre.

Deu-se, no entanto, que chegada a hora agrícola, infalível na vida de todos, o casal construiu um sítio na beira da Amaral Peixoto, mudando-se para lá de corpo e alma. E chegou então o primeiro Natal dos novos fazendeiros. Mantinha-se a tradição de festa? Mantinha-se. Mas os amigos cruzariam a baía para andar ainda os 20 quilômetros entre Niterói e o sítio?

Fiquei encarregado de assuntar uma parte da turma. Depois das primeiras demarches, achei que a ceia seria até melhor do que nos outros anos: todos os convidados habituais faziam questão de ir, fiéis, mais animados do que nunca.

— Pegar a barca?! Mas para ir ao aniversário do Fonseca eu atravessaria o mar Vermelho a nado!

— Eu, disse-me outro, não perderia aquela ceia nem por 20 contos de réis!

Mandei avisar que estava tudo ok; quanto a meu setor, a festa seria a mesma de sempre. Minucioso, Fonseca desejava saber quantas pessoas iriam. Fiz uma relação de compromissos certos, e segui, no dia 21, para o sítio, levando as notícias.

— Olha aqui, são no mínimo 11 automóveis lotados, por volta de 50 a 60 pessoas.

— Mas será que virão mesmo, duvidou a comadre; olha que essa gente é meio maluquinha.

— 11 carros são de pedra e cal; há ainda três ou quatro incertos. Fora as pessoas que não consegui encontrar.

Diante disso, a comadre e o compadre meteram mãos à obra; tinham dois dias a fim de organizar uma ceia, digamos, para uma centena de gafanhotos excelentes. Foi uma África no arraial do Cala Boca. As empregadas trouxeram maridos e parentes para ajudar na faina. Era uma correria de manhã à noite. Fonseca e eu descendo várias vezes até Niterói para as compras. A casa lembrava um matadouro, perus passados na faca, leitões imolados com estrépito, os caldeirões chiando, os aromas da felicidade culinária rescendendo.

Os primeiros carros deveriam chegar ali pelas três horas da tarde. 15 minutos antes, o compadre e eu entrávamos, suarentos, mas eufóricos, com as barras de gelo, enquanto a comadre ia florindo as jarras com encanto e pressa. Eram as carinhosas providências finais. Tomamos um banho, vestimos roupas limpas, e começamos a esperar. Lá dentro, abarrotando cozinha e copa, as vitualhas sortidas e saborosas prometiam generosas recompensas aos vândalos simpáticos.

Uisquinho no copo, salgadinhos na frente, fomos de alma leve para o bem-bom da varanda, dispostos com alegria a receber os amigos. Estávamos cheios de abraços a distribuir, beijos para as faces das amigas mais íntimas, graçolas a dizer, nesse alvoroço de espírito que é o estofo da amizade e do Natal. O sítio erguia-se a cavaleiro da estrada, e a gente via lá embaixo os automóveis vindo de longe, reconhecendo a marca e a cor. Agora é o Gusmão. O carro vinha até a entrada do sítio, buzinava, parecia que ia entrar, e continuava, continuava no caminho de Cabo Frio. Aquele é o Chevrolet do Haroldo. A gente ia ver, não era. Aposto que aquele é o carro do Irineu. Perdi a aposta. Dessa vez é o Raimundo. Não era. Olha o Flávio. Mentira. Juro que aquele é a camioneta do Jatobá. Jurei em vão. O Nelson. Não era. O Millôr. Coisa nenhuma. O Mirabeau. Que Mirabeau que nada. O Darwin. O Saenz. O Berr. O Jardim. O Eustáquio, Doña Rosita, la soltera. O Lobo. O Lúcio. O Zé Auto. O Murilo. Aquele inglês doido. O Azevedo. O Simeão, ah, o Simeão, finalmente! Não era, não era, não era.

Ao cair o crepúsculo, sentia-me nervoso, mas ainda dispunha de justificativas razoáveis.

Encheram a cara ontem, dormiram o dia inteiro; vão chegar agora.

Com a escuridão, a tentativa de adivinha: era impossível; os faróis batiam em nosso rosto, ultrapassavam a porteira aberta, oferecida, sumiam. Às 21 horas, a comadre colocou na sala os perus à Chico Wright (que também não chegou), os leitões, pratos variados e trabalhosos, compoteiras cheias de castanhas e avelãs. Fonseca não dizia nada, assoviava. Às dez horas, a comadre fez uma piada melancólica:

— Melhor que não chegue mesmo ninguém; assim nós comemos tudo.

Chegou foi a chuva. Às 23 horas, um empregado veio dizer que tinha um bêbado caído numa vala. Mandamos buscá-lo, demos-lhe peru e uísque. O bêbado ficou malcriado e tivemos de expulsar o conviva. Aí, pendurei meu copo, caí na rede, fingi que estava dormindo.

À meia-noite vieram me chamar, dei um grande abraço no casal, empunhei minha taça para o champanha. Pois o diabo da rolha foi bater exatamente no olho da comadre! Aí, rimos muito, bebemos, comemos, dançamos e cantamos. Só de raiva. Mas pior de tudo, extravasados das bandejas, eram os leitões, que me espiavam com um sarcasmo irritante de espírito de porco.

paulo-mendes-campos
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