23 mar 1974

Declaração de males

Periódico
Manchete

Publicada, também, no Jornal do Brasil,  caderno Ideias, de 21/01/1990 e, posteriormente,  no livro O amor acaba, Companhia das Letras, 2013, pp. 253-255.  

Não amei com suficiência o espaço e a cor. 
Não acredito nos relógios, mas fui 
redator. Não posso beber tanto quanto 
mereço, pelo fígado e pelo preço.

Ilmo. sr. Diretor do Imposto de Renda:
antes de tudo devo declarar que já estou (parceladamente)
                                                                                [à venda.

Não sou rico nem pobre, como o Brasil, que também 
                 [precisa de boa parte do meu dinheirinho.
Pago imposto de renda na fonte e no pelourinho.

Murchei em colégio interno durante seis anos.
Não cheguei ao fim de nada, a não ser de desenganos.

Fui caixeiro. Fui redator. Fui bibliotecário.
Fui roteirista e vilão de cinema. Fui pagador de operário.

Já estive (sem diagnóstico) bem doente. 
Fui acabando confuso e autocomplacente.

Deixei o futebol por causa do joelho.
Viver foi virando dever e fui entrando no vermelho.

No Rio (que eu amava), o saldo devedor
já há algum tempo que supera o saldo do meu amor.

Não posso beber tanto quanto mereço.
Pela fadiga do fígado e a contusão do preço.

Sou órfão de mãe excelente.
Outras doces amigas morreram de repente.

Não sei cantar. Não sei dançar.
A morte há de me dar o que fazer até chegar.

Uma vez quis viver em Paris até o fim.
Mas não sei grego nem latim.

Acho que devia ter estudado anatomia patológica. 
Ou pelo menos anatomia filológica.

Escrevo aos trancos e sem querer.
Há contudo, orgulhos humilhantes no meu ser.

Será do avesso dos meus traços que faço o meu retrato? 
Sou um insensato a buscar o concreto no abstrato.

Minha cosmovisão é míope, baça, impura.
Mas nada odiei, a não ser a injustiça e a impostura.

Não bebi os vinhos crespos que desejara.
Não me deitei nos sossegos que acalentara.

Sou um narciso malcontente da minha imagem. 
Jamais deixei de saber que vou de torna-viagem.

Não acredito nos relógios... the pale cast of thought... 
Sou o que não sou (all that I am I am not).

Podia talvez ter sido um bom corredor de distância: 
correr até morrer era a euforia da minha infância.

O medo do inferno retorceu as raízes gregas do meu 
                                                                   [psiquismo.
Só vi que as mãos prolongam a cabeça quando já me 
                                                     [perdera no egotismo.

Não creio, contudo, em my self.
Nem creio que possa revelar-me em other self.

Não soube buscar (em que céu?) o peso leve dos anjos e 
                                                                [a divina medida.
Sou o próprio síndico da minha massa falida.

Não amei com suficiência o espaço e a cor. 
Comi muita terra antes de abrir-me à flor.

Gosto dos peixes da Noruega; do caviar russo; das uvas de 
                                                                            [outra terra.
Meus amores pela minha são legião, mas vivem em guerra.

Fatigante é o oficio para quem oscila entre ferir e remir. 
A onça montou em mim sem dizer aonde queria ir.

A burocracia e o barulho do mercado me exasperam num
                                                                               [instante.
Decerto fui crucificado por ter amado mal me
                                                      [semelhante.

Algum deus em mim persiste.
Não soube decidir entre a lua que vemos e a lua que
                                                                          [existe.
Lobisomem, sou arrogante às sextas-feiras, menos quando é 
                                                                                 [lua cheia.
Persistira talvez também, no rumor da tormenta, algum
                                                               [canto de sereia.

Deixei de subir ao que me faz falta, não por virtude. 
Meu ouvido é fino e dói à menor mudança de altitude.

Não sei muito dos modernos e tenho receios da caverna
[de Platão.

Vivo num mundo de mentiras captadas pela minha
                                                                  [televisão

Jamais compreendi os estatutos da mente.
O mundo não é divertido, afortunadamente.

E mesmo o desengano
talvez seja um engano.

paulo-mendes-campos
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