Fonte: O anjo bêbado, Sabiá, 1969, pp. 7-11. Publicada, posteriormente, na revista Manchete, de 7/04/1973, com alterações e o título "Sérgio Porto".

O diabo é que todo mundo pensa que sou um cínico; ninguém acredita que sou um sentimentalão que não aguenta uma gata pelo rabo.

Sérgio me dizia isso a milhares de metros de alti¬tude, copo de uísque na mão, rumo a Buenos Aires. Ao saber que eu tinha resolvido assistir ao jogo Brasil e Uruguai, no Campeonato Pan-Americano de 1959, veio procurar-me com uma ansiedade incomum: precisava afastar-se do Rio de qualquer jeito, me disse, tinha deci¬sivos assuntos íntimos sobre os quais queria pensar.

Sendo assim, por que ir a Buenos Aires? Não fiz a pergunta por entendê-lo: Sérgio possuía o talento de viver em diversas faixas ao mesmo tempo; Buenos Aires lhe calhava numa instância de decisões pessoais porque o recolhimento do hotel se somava aos benefícios do torneio de futebol, da companhia dos amigos, das anedo¬tas jornalísticas e até mesmo dos restaurantes portenhos.

Já dentro do avião, nessa ou em qualquer outra viagem, desligado de suas duras obrigações, transformava-se: mesmo roído por dentro, a gratuidade do instan¬te era boa demais para não ser aproveitada. Sempre que uma aeromoça lhe perguntava se queria um sanduíche ou um refrigerante, respondia alegremente com uma frase que ouviu de Billy Blanco: "Quero tudo a que eu tenha direito." E era verdade.

Na chegada a Buenos Aires, houve uma dessas súbi¬tas situações cômicas criadas por aquele homem carregado de conflitos: avião estacionado, entrou nele um médico da saúde pública, um homem ruivo e bastante calvo. Pedindo aos passageiros que exibissem o atestado de vacina, o médico estendeu a mão para Sérgio, ao mesmo tempo que dizia em tom cavo e impessoal: "Vacunación, señor." Como se estivesse recebendo um cumprimento de boas-vindas, Stanislaw (aí era ele), muito grave, apertou a mão do médico, falando claro e efusivo: "Vacunación para usted también!" O médico, rubro de indignação, expulsou-nos do avião, sem mais exigir o documento sanitário e, enquanto eu explodia de rir, ele sussurrava-me entre os dentes: "Aguenta a mão, se não a gente acaba em cana."

O dom mais surpreendente de Sérgio era esse trânsito livre entre as manifestações da vida. Ainda no dia de nossa chegada a Buenos Aires, eu o veria em atitu¬des múltiplas: durante o jogo dramático entre o Brasil e o Uruguai (o três a um da briga), ele deu um empur¬rão nos peitos dum argentino que insultava os brasi¬leiros, chorou quando Paulo Valentim fez o terceiro gol, riu-se às gargalhadas quando o Garrincha passou indi¬ferente entre uruguaios e entrou no ônibus com um sanduíche enorme na boca e outro na mão; e ainda conver¬sou longamente comigo sobre suas aflições, depois de cear com entusiasmo.

Quando acordei, ele já andava pelo saguão, depois de ler os jornais todos, à cata de histórias do Mendonça Falcão — a máquina já destampada no quarto.

Fiquei seu amigo há mais de 20 anos, quando ele escrevia crônicas de música popular para a revista Sombra. Bonito, forte, elegante, inteligente, alegre, simpá¬tico — era um privilegiado sem ostentação. Só lhe faltava, o dinheiro, como de resto ao grupo todo: mesmo mal pagos, tínhamos de aceitar as ofertas que a imprensa nos fazia como um favor, bicando aqui e ali, sofrendo na carne os atrasos do caixa, brigando pelo dinheirinho de cada dia. Mas o clima não era de miséria nem de tristeza: bebíamos crepuscularmente nosso uísque esco¬cês no Pardellas da Rua México, dançávamos no Vogue, andávamos de táxi. Já que o dinheiro era pouco, o jeito era gastá-lo no essencial: o apartamento próprio que esperasse.

Eustáquio Duarte, Lúcio Rangel, Luís Jardim, Cássio Fonseca, Jarbas Duarte eram diariamente pontuais no Pardellas; Zé Lins do Rego, Rosário Fusco, Santa Rosa, Jaime Adour da Câmara, Flávio de Aquino, Simeão Leal, Luis Santa Cruz e outros apareciam com frequên¬cia. O jazz negro era o nosso alimento: Sérgio e seu tia Lúcio Rangel ensinaram ao resto da turma o que era puro nesse setor e o que se contaminara.

Por um momento, numa fase financeira mais dura, quase o acompanhei num gesto até certo ponto deses¬perado: o de escrever programas de rádio. Para ele foi o início duma vida de sucesso profissional e cruel desgaste físico. Na imprensa, no rádio e na televisão do Brasil, a ascensão se confunde com a queda. Sucesso nesse terreno não é poder trabalhar menos e ganhar o suficiente: é trabalhar sempre mais. Vitorioso no Brasil é o jornalista que sempre encontra mercado de trabalho; e não preços mais altos. Só chega ao chamado certo nível de vida somando diversas atividades corrosivas.

O humorista começou a surgir no semanário Comício, excelente escola de descontração do estilo jornalístico, dirigido por Rubem Braga, e Joel Silveira, onde escre¬viam ainda Clarice Lispector, Millôr Fernandes, Fernan¬do Sabino, Otto Lara Resende, Rafael Correia de Oliveira, Carlos Castelo Branco, Edmar Morel, onde também apareceram as primeiras crônicas de Antônio Maria e as primeiras reportagens de Pedro Gomes.

Digo o humorista profissional, porque o da convi¬vência com os amigos vinha do tempo das peladas em Copacabana: Sandro Moreira, João Saldanha, Mauricinho Porto, George Rangel, Mariozinho de Oliveira, Carlos Peixoto e Carlinhos Niemeyer são alguns que se lembram das histórias engraçadas de Sérgio, o Bolão.

Sua vivacidade era tão instantânea que sempre a aceitei com naturalidade. Espantava-me, isto sim, seu discernimento, agudo, preciso, a respeito de tudo: uma canção, um cantor, um vestido, um quadro, uma atmos¬fera, uma situação complicada. Dizia em cima a palavra exata, a observação certa, o julgamento justo.

0 contraditório é que pudesse fazer humorismo uma pessoa que possuía tanto senso das proporções e da verdade escondida. Seu humorismo, bem reparado, não era o usual, pelo contrário, ele fazia humor sem carica¬turar o assunto. Bernard Shaw, quando queria fazer graça, dizia a verdade. Ele também fez graça falando verdades, descobrindo verdades, tendo a coragem de ser odiado por dizê-las.

Como todo homem de sensibilidade, precisava de amigos e afeto; mas desprezava os mesquinhos, os medíocres, os debilóides, os cretinos.

Seu gosto era certo. Amava os livros e os discos, milhares de discos, discos que ouvia às vezes enquanto trabalhava, atendendo ao telefone a todo instante, recebendo amigos, contando piadas, e continuando a batucar na máquina, insistindo para que o visitante ficasse, sob a afirmação (verdadeira) de que estava acostumado a escrever no meio da maior confusão.

Eu, que apesar de tarimbado, já começo a ficar afobado no fim deste mal enramado artigo, com a redação querendo saber se já pode mandar buscá-lo, lembro a tranquilidade de Sérgio no meio do caos, e não entendo o segredo que o dotou ao mesmo tempo de extraordiná¬ria capacidade de trabalho e da calma que deve ser a dos monges tibetanos.

De que morreu Sérgio Porto? Do coração e do trabalho.

No fim do ano passado, nas vésperas de Natal, estivemos juntos em Brasília: ele se lamentou o tempo todo no dia da volta, dizendo que ficaria ali, na ociosidade do hotel, por um tempo indeterminado. Foi difícil arrancá-lo da cama ao anoitecer. Este ano viajamos novamente juntos para São Paulo e Belo Horizonte. Foi a mesma coisa. Queria descansar, transfigurando-se no repouso, encaran¬do com horror as atividades que o esperavam no Rio.

Na nossa última noite em Belo Horizonte, ele, Fernando, Rubem, Gérson Sabino e eu jantamos num restaurante muito bonito, que tinha de tudo, menos comida mineira. Sérgio reclamou tristemente durante todo o jantar. Queria arroz, feijão, couve, linguiça.

Não sei por que essa lembrança me comove e serve para fechar esta página que eu não queria triste. Que a tristeza fique conosco, os amigos que o amavam.

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